Abramovay: “A intervenção
na Cracolândia não pode ser policial”
O ex-secretário nacional de Justiça Pedro Abramovay defende que a
intervenção na Cracolândia não pode ser policial. Para ele, O Plano de
Ação Integrada Centro Legal executado em conjunto pela prefeitura e pelo estado
de São Paulo, que começou na terça-feira, com a intenção de esvaziar a
Cracolândia, não está “lidando, de fato, com política sobre drogas”.
- A intervenção
na Cracolândia não pode ser policial porque o objetivo não é segurança pública,
não é diminuir a violência. A intervenção na Cracolândia tem que ser uma
combinação de saúde pública com intervenção social. E saúde pública e
intervenção social não combinam com polícia. Porque a polícia intimida a ação –
afirmou ele em conversa com o Poder Online.
Para Abramovay, que chegou a assumir a Secretaria Nacional de
Políticas Sobre Drogas no início de 2011, mas foi a primeira baixa do
governo Dilma Rousseff, uma política sobre drogas só funcionará a partir do
momento que se apresentar como resultados a redução de consumo, a melhoria
da condição de saúde das pessoas e a diminuição da violência.
Poder Online – Começou na
terça-feira uma operação da Polícia Militar na Cracolândia, na região central
de São Paulo, em busca de traficantes. Como vê a ação?
Pedro Abramovay - Tem uma grande questão por trás disso, que é a imprensa, incentivada pelos
atores da ação, usar o termo ocupação da Cracolândia. Esse termo tenta
relacionar o que está acontecendo em São Paulo com o que acontece no Rio de
Janeiro. É como se a intervenção fosse a UPP [Unidade de Polícia
Pacificadora] de São
Paulo. E o que está acontecendo na Cracolândia é oposto do que está acontecendo
no Rio de Janeiro. É muito diferente, parte de lógicas diferentes. E as razões
que fizeram as UPPs darem certo no Rio de Janeiro não estão presentes no caso
da Cracolândia.
Poder Online – Quais são essas
razões?
Pedro Abramovay - No Rio de Janeiro, era um problema de segurança pública, de violência e de
falta de liberdade, de domínio militar de regiões da cidade. Tem relação com as
drogas? Tem porque esse domínio era feito pelo tráfico de drogas. Mas o
objetivo da intervenção era diminuir a violência e devolver aquele espaço
territorial para as comunidades. O grande motivo de êxito da intervenção no Rio
é justamente quando a Secretaria de Segurança diz que não vai erradicar o
tráfico de drogas. Porque a polícia não consegue erradicar o tráfico de drogas,
nunca conseguiu em nenhum lugar do mundo e não vai conseguir no Rio, nem na
Cracolândia. Quando a polícia admite que não está ali para erradicar o tráfico
de drogas, mas sim para diminuir a violência, ela funciona muito. E a polícia
entrou e teve resultados bastante satisfatórios no Rio de Janeiro.
Poder Online – Na Cracolândia,
os policiais foram orientados a não tolerar
mais consumo público de droga.
Pedro Abramovay - Na Cracolândia, o problema central não é um problema de segurança pública.
O problema central da Cracolândia é um problema de saúde pública agravado por
um problema social. Quer dizer, o crack gera sem dúvida um problema de saúde
pública, mas ele é muito mais perverso quando se encontra com os excluídos
entre os excluídos, que é o que acontece na Cracolândia. A intervenção na
Cracolândia não pode ser policial porque o objetivo não é segurança pública,
não é diminuir a violência. A intervenção na Cracolândia tem que ser uma
combinação de saúde pública com intervenção social. E saúde pública e
intervenção social não combinam com polícia. Porque a polícia intimida a ação.
Poder Online – O primeiro
objetivo da ação é, segundo as medidas definidas pela prefeitura e pelo estado
de São Paulo, prender os traficantes da região.
Pedro Abramovay - A ideia de que existe ali um traficante, que é uma figura completamente
divorciada do usuário, não é verdade. O usuário de drogas, a pessoa que está
ali na Cracolândia e tem que ser alvo de uma política de saúde, de uma política
social, já vendeu droga em algum momento. Boa parte deles já vendeu uma pedra
para comprar outra pedra. Se for separar e dizer que a polícia está ali para
evitar o tráfico e vamos ter também uma ação social, não é possível abordar as
pessoas com a polícia por perto porque elas tem muito medo da polícia. O
usuário tem medo e o agente público também. Ele sabe que não vai funcionar.
Poder Online – Um dos
argumentos usado pelos responsáveis pela ação é que a falta de droga fará com
que as pessoas busquem o tratamento, que é a estratégia de “dor e sofrimento”.
Pedro Abramovay - Isso é achar que a polícia vai conseguir fazer com que a droga não chegue
lá. Isso nunca aconteceu. Nenhuma política repressiva evitou que a droga
chegasse a determinadas pessoas. Nos EUA, onde se gasta tanto dinheiro com a
guerra contra as drogas, não tem esse êxito. O preço só cai e o consumo não. No
máximo, se der tudo certo na Cracolândia, o que vai acontecer é que as pessoas
vão ser deslocadas para outros lugares. Mas elas vão ter acesso a drogas. Não é
que elas estão presas com uma espécie de imã àquele lugar, que é só cercar por
ali e elas não terão mais acesso às drogas. O jeito de fazer as pessoas de
saírem dessa prisão, que é a droga, é com políticas de tratamento, que respeite
a liberdade dessas pessoas, que trate essas pessoas como indivíduos e que faça
essas pessoas escolherem, de algum jeito, nunca mais usarem drogas. Esse é o
único jeito que funciona. E com polícia isso não funciona. E não é culpa da
polícia. E até muito injusto com a polícia exigir isso dela. A polícia não é
feita para fazer política de saúde e política social.
Poder Online – A Polícia Militar tem divulgado
a cada dia da ação o número de presos. A prisão resolve o problema da
Cracolândia?
Pedro Abramovay - Tem uma questão que temos que prestar atenção: toda política sobre drogas
tem na sua métrica indicadores que não têm nada a ver com o seu objetivo. A
redução de consumo, a melhoria da saúde das pessoas e redução da violência são
os objetivos de uma política sobre drogas. Mas nunca se mede por ai, sempre é
por apreensão de drogas e por prisão. E isso não tem nada a ver. O fato de ter
prendido tantas pessoas não melhorou a saúde de ninguém. No máximo, tirou
aquelas pessoas dali. Mas não se está lidando de fato com política sobre drogas
quando se apresenta como números apreensão de drogas e prisão de pessoas.
A partir do momento que se apresentar como números a redução de consumo, a
melhoria da condição de saúde das pessoas e diminuição da violência, ai se pode
dizer que a política está funcionando.
Poder Online – O Brasil é capaz de ter uma
política sobre drogas nacional, que oriente as ações nos estados?
Pedro Abramovay - Acredito que necessário ter uma política sobre drogas para o país inteiro,
o que não significa que ela não levar em consideração as particularidades de
cada local. Por exemplo, o modelo da UPP funciona muito bem no Rio de Janeiro.
A realidade de São Paulo não é a realidade de ocupação territorial,
militarizada pelo tráfico de drogas. Claro que é preciso construir uma política
a partir de cada casa, mas existem princípios gerais que podem ser estimulados
pelo governo federal e podem ser aplicados no Brasil inteiro com certeza.
Poder Online – Quais?
Pedro Abramovay - No plano do governo federal sobre as drogas, lançado recentemente, está
priorizado o aspecto da saúde pública. É um fato histórico o porta-voz do plano
ser o ministro da Saúde [Alexandre Padilha]. Isso é um fato a ser comemorado.
Não é nem a polícia, nem os militares, como era há pouco tempo no Brasil. Mais
especificamente, temos modelos de tratamento a serem debatidos. No caso
específico do crack, modelos que deram certo são aqueles que têm o tratamento
ambulatorial na rua, e não na internação. Primeiro porque a internação tira a
liberdade da pessoa de maneira arbitrária. Mas mais do isso, a internação tira
a pessoa do convívio da sociedade e faz com que ela lide com a ausência da
droga em um contexto que não é real. Muitas vezes, ela volta para rua e fica
abandonada. Acaba, assim, procurando a droga novamente. Quando se trata na rua,
tem a redução de danos imediata e faz com que a pessoa entenda os problemas da
droga na realidade dela. Mais eficiente é o tratamento que respeita a liberdade
do usuário.
Poder Online – Recentemente, inspirado em um
relatório do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o secretário-geral da
ONU, Ban Ki-moon, criou uma força tarefa para formular uma nova política em
relação ao tráfico de drogas. A ação na Cracolândia em São Paulo está na contramão
do que está acontecendo no mundo?
Pedro Abramovay - A política nacional não se identifica completamente com o que está
acontecendo em São Paulo. Mas no mundo inteiro estamos lidando com uma mudança
de concepção, com quebras de tabus, de paradigmas. O tema nunca foi debatido a
sério, seja na política internacional, seja na política nacional. De dois anos
para cá, houve uma mudança radical nas possibilidades de debate. Temos que
aproveitar isso para que todos os lados dessa questão – que é muito polarizada
– possam ser ouvir e discutir a sério. E não mais tratar simplesmente como uma
luta ideológica onde de lado tem as pessoas que chamam quem defende políticas
mais liberais de maconheiros e de outro lado pessoas que não se dão conta dos
efeitos prejudiciais que as drogas têm. É um momento riquíssimo e espero que o
Brasil saiba aproveitar esse momento para debater o tema sem preconceito.
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