Centro de cobiça
Para estudioso, o poder imobiliário ficou acima do
interesse público na região, que é bem mais que uma cracolândia
28 de janeiro de 2012 - Mônica Manir - O Estado de S.Paulo
No apartamento que levou 25 anos para pagar, o cientista político Lúcio
Kowarick caminha lentamente, trazendo lá de dentro dois livros seus. Um deles,
Viver em Risco, ganhou o Prêmio Jabuti 2010 na categoria Ciências Humanas. O
outro, São Paulo: Novos Percursos e Atores, também da Editora 34, é trabalho
recente e mote para esta entrevista, numa semana em que a cidade aniversariou,
o Nova Luz empacou e o prefeito Gilberto Kassab escapou de uma chuva de ovos
que lambuzou sua performance na Praça da Sé.
Kowarick orienta alunos na USP e já foi pesquisador visitante nas
universidades de Londres, Paris e Oxford. No livro e na conversa, focou-se no
centro de São Paulo, tratando especialmente de dois pontos: o estupendo valor
de troca da região, que seguiria a lógica do lucro especulativo, e seu intenso
valor de uso, local de trabalho e de moradia. Daí que afirma: "Não dá para
falar em decadência". Para Kowarick, o centro não é território de
transbordo, nem reduto de drogados, nem terra de ninguém. "No processo de
renovação urbana, e apesar do discurso higienista, a população tem o direito de
permanecer ali." Reconhecido por sua pesquisa nos anos 70 das periferias
que nasciam e cresciam desassistidas pelo Estado, ele hoje estuda com afinco os
cortiços da cidade e sua surpreendente população de 600 mil pessoas, tema de
mais um artigo - quiçá outro livro - que está por vir.
Em liquidação?
"O centro da cidade tem um dinamismo, entende? Não é uma área de
transbordo, pela qual a população simplesmente passa. Bem verdade que houve uma
transferência do comércio de alto e médio padrão que existia ali para outras
zonas, como a Faria Lima e a Paulista, e em seguida a Berrini e a Marginal do
Pinheiros. Hoje o padrão de consumo é outro. A casa Mappin, que era de luxo,
mudou de nome e tornou-se popular. Há um comércio de rua bastante grande e em
certas regiões o metro quadrado vale muito, como na 25 de Março, com preços
iguais aos de muitas lojas de shopping. Apesar de certo descaso da
administração com o lugar, a Marta (Suplicy) levou a Prefeitura para o antigo
prédio Matarazzo e uma série de secretarias para o entorno. O governo do Estado
também começa a alocar serviços ali. As sedes dos bancos saíram, mas a
concentração bancária continua forte na região. Isso gerou empregos. Não dá
para falar em decadência.
Cortina de fumaça
"Houve uma quase premeditação de se dizer que a cracolândia era maior
do que de fato era. Ela se resumia a uma zona bem pequena, a algumas ruas, e
fizeram com que toda a área que supostamente passaria por um processo de
reurbanização fosse chamada assim. É como se, de um foco pequeno, você
contaminasse toda uma região para, enfim, se não deteriorar essa área, colocar
os preços mais embaixo e facilitar uma intervenção. Agora, os interesses
privados não têm se mostrado muito dispostos em intervir neste momento. Estão
provavelmente esperando que o preço dos imóveis caia para poder comprar e
revender por um valor bem mais alto.
Bate-se antes
"Olha, a nossa polícia é uma polícia violenta. Existe a polícia de
controle, uma inovação importante, porém ainda muito reduzida. A proposta é
livrar a cidade do que chamam de sujeira, da população pobre, miserável, de
extrema baixa renda, dos consumidores de drogas. Claro que um morador de rua na
porta de uma loja atrapalha o negócio do comerciante e ninguém quer um sem-teto
na frente de casa. Mas não tem sentido usar gás lacrimogêneo e bala de borracha
e ainda espancar uma população desvalida. Deviam amparar. A dispersão, no caso
da cracolândia, compromete o trabalho de uma série de organizações que estão
tentando tirar essas pessoas desse estado de decomposição física e mental.
Forças intrínsecas
"O Estado, nos seus vários níveis, não é neutro. Ele sofre pressão de
grupos extremamente fortes que atuam dentro das burocracias estatais, nas
secretarias, nas assembleias de vereadores. Isso é amplamente conhecido. E o
poder imobiliário e financeiro é um deles. A população pobre, em comparação com
esses grupos, tem pouca força relativa. Os movimentos sociais ficam na defesa,
tentam conseguir um pouco aqui, um pouco lá, mas nunca o suficiente para
impedir o que aconteceu em Pinheirinho, por exemplo. Ou fazer um projeto
alternativo ao Nova Luz, que traz uma inovação complicada: a Prefeitura vende
ao proprietário o direito de ele desapropriar. Estão dando ao sistema privado
uma ingerência que a princípio é atributo, é direito e é dever do poder
público. O interesse privado vai procurar o lucro, enquanto o público deveria
procurar o bem do município. Não precisa pensar apenas na população de baixa
renda, mas na mistura social, em várias faixas, que é a forma de convivência
mais adequada.
Invasão x ocupação
"Se você falar em ‘invasão’ na frente do líder de um movimento
social, é expulso daquele lugar. Eles dizem ‘ocupação’. É uma questão semântica.
Ocupar implica o direito de estar lá. Invadir significa espoliar o direito do
outro. Falando nisso, em novembro sete prédios foram ocupados simultaneamente
no centro de São Paulo. A luta não é somente uma luta concreta, de conseguir
este ou aquele favor. É uma luta ideológica. Se um interessado na Nova Luz
vence nas palavras, se o seu discurso se torna hegemônico, se convence as
pessoas de que é um projeto que deve ser feito, se tem a mídia a favor, os
políticos a favor, o poder econômico a favor, ele consegue convencer a
população de que vai higienizar a cidade. Essa ideia de limpeza é antiquíssima.
Os primeiros interventores do município eram médicos higienistas, que
combateram as febres, a varíola, a tuberculose.
Instrumentos à mão
"Historicamente, no Brasil, toda renovação urbana, na qual se demolem
residências em péssimo estado e se levantam prédios em seu lugar, implica
expulsão da população. A renovação aumenta o preço dos aluguéis e dos imóveis,
o que torna impossível aos pobres se fixarem lá. Aliás, esse é um fenômeno que
ocorre também na periferia. Se você tem uma área relativamente desprovida de
serviços e estende até ela a rede de água e esgoto, há uma valorização que
tende a expulsar para longe a população mais pobre. Ao mesmo tempo, entre 20% e
25% dos imóveis do centro de São Paulo estão vazios, sejam comerciais ou
residenciais. Estão ociosos. Muitos têm problemas de herança, os herdeiros não
conseguem se ajeitar, deixam de pagar o IPTU, o imposto sobe, os imóveis vão se
deteriorando e acabam abandonados. O Estatuto da Cidade, que é muito forte, e o
IPTU progressivo, que taxa os imóveis vazios, são instrumentos à mão para
conter a especulação imobiliária e prover moradia para quem não a tem. Se
fossem aplicados de maneira mais radical...
Outra casa, outra vida
"À parte o BNH, que foi uma política habitacional massiva voltada
para a classe média-média, nunca houve algo do gênero para a população de baixa
renda. O Minha Casa, Minha Vida engatinha, não gastam o dinheiro que foi
alocado, é uma coisa que ainda não deslanchou. Mas no fundo é o seguinte: ou se
financia a habitação para a classe pobre ou ela não tem dinheiro para pagar por
isso. Não tem. Os programas existentes hoje exigem uma burocracia que atrapalha
muito e ainda excluem grande parte da população. As experiências europeias são
de ajudas subsidiadas, seja do setor privado, seja do setor público subsidiando
o setor privado. A Paris do século 19, por exemplo, era uma miséria total. Veja
Os Miseráveis, de Victor Hugo. Acabou isso. Depois da 2ª Guerra houve na França
uma outra guerra, contra os cortiços, com renovação de bairros inteiros. Mas a
população que morava lá tinha a prerrogativa de continuar lá. Não foi um
processo de expulsão.
Varal caro
"Uma pesquisa antiga, de 1993, estima que 600 mil pessoas vivem em
cortiços na capital. Os movimentos sociais calculam em 1 milhão atualmente. O
cortiço, na verdade, já chegou a abrigar 60% da população da cidade, e hoje a
especulação nesse espaço é absurda. Cálculo feito pelo engenheiro Luiz Kohara
afirma que o metro quadrado dos cortiços vale três vezes mais que o metro
quadrado de um apartamento normal no centro - lembrando que são três, quatro
pessoas dividindo o mesmo aluguel num espaço exíguo e sob enorme promiscuidade.
É um chuveiro para 20 pessoas, uma privada para 20 pessoas, a convivência é
extremamente difícil, se ouve o barulho dos vizinhos, da televisão, das
brigas... Ao mesmo tempo, em relação às favelas e à periferia, o cortiço é
muito pouco estudado. Há quem more ali faz muito tempo, mas outros estão de
passagem até conseguir um lugar melhor. Ou seja: é uma população difícil de ser
medida, que ocupa principalmente casarões e paga aluguel combinado verbalmente,
sem papel, sem compromisso, e portanto bastante alto.
Puxadinho, puxadinho
meu
"A casa é um abrigo contra a intempérie do desemprego, do acidente de
trabalho, da velhice, da doença. E sem dúvida é uma questão valorativa de ter
algo seu, inclusive de mandar naquela coisa. Eu quero construir aqui, fazer um
muro de arrimo ali, levantar um segundo andar, um puxadinho, trazer o
conterrâneo que vai ajudar a construir. Depois vou comprar um terreno mais
longe, vou fazer uma segunda casa. Porque tem essa mentalidade de a população
poupar construindo num lugar longínquo, onde só tem mato, o sistema de
transporte é ruim, o posto de saúde está a quilômetros, mas de repente as
coisas vão chegando, e quem consegue ficar ali faz uma poupança, deixa algo
para os filhos. E esse algo é um teto. Mas não pense que a autoconstrução é
fácil. As pessoas trabalham muito nas horas extras, nos domingos, no fim de
semana. Ter uma casa não é algo simples."