"Maconha
não é mais uma droga leve"
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João
Goulão
"Maconha não é mais uma
droga leve"
Formulador da política de entorpecentes portuguesa, considerada uma
das melhores do mundo, diz que a maconha está quimicamente mais potente e
afirma que o Brasil não está preparado para a descriminalização
por Wilson Aquino
CRACK
NO BRASIL
"A motivação para o tratamento poderia ser trabalhada", diz Adetenção de três jovens fumando maconha no campus da Universidade de São Paulo motivou a rebelião dos estudantes – que terminou na delegacia – contra a polícia nas últimas semanas. Como tratar a questão das drogas é um tema sempre polêmico no Brasil, por isso a experiência internacional pode ser útil para o País. Atualmente, Portugal tem um dos melhores modelos do mundo de prevenção e combate aos entorpecentes. Apesar de a descriminalização do consumo ser o item de maior visibilidade, o sucesso do programa passa pela criação de uma rede específica para o dependente.
“Faz
mais sentido tratar uma pessoa doente no sistema de saúde do que no
prisional”, afirma o médico português João Goulão, 56 anos, presidente do
Conselho de Administração da Agência Europeia de Informação sobre a Droga
(OEDT) e do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) de Portugal. Para o
especialista, só descriminalizar o consumo não resolve. “O fenômeno da droga
tem de ser abordado por um órgão, a Justiça ou a Saúde. Não podemos retirá-la
da Justiça e não ter as respostas da Saúde”, diz ele, que há 30 anos trabalha
na recuperação de viciados.
"Quanto mais cedo prevenirmos o consumo de álcool, menor a probabilidade de a pessoa se tornar viciada em qualquer coisa"
"Antes
tínhamos 100 mil usuários de heroína, hoje não chegamos aos 30 mil.
As drogas eram a primeira preocupação dos portugueses, hoje ocupam o 13º lugar"
ISTOÉ -
Qual a porta mais comum para o jovem entrar nas drogas?
JOÃO
GOULÃO - A escalada começa com bebida alcoólica, cigarro e maconha. Mas não
é, necessariamente, sempre assim. Hoje, as pessoas têm procurado direto as
drogas mais prestigiadas: estimulantes, como a cocaína e o ecstasy.
Felizmente, a heroína está desprestigiada; os jovens assistiram à destruição
das gerações anteriores, a depauperação física e mental, e a rejeitam.
Infelizmente, o perfil do usuário da heroína é bastante semelhante ao do
crack no Brasil. O fato é que, quanto mais cedo prevenirmos o consumo de
álcool, menor a probabilidade de a pessoa se tornar viciada em qualquer
coisa.
ISTOÉ -
Maconha é uma droga leve?
JOÃO
GOULÃO - Maconha não é mais uma droga leve. A maconha hoje tem uma
concentração do seu princípio psicoativo, o THC, muito maior do que dez anos
atrás. Aliás, nenhuma droga pode ser considerada leve. O que realmente
interessa é a importância que a droga ganha na vida da pessoa. Se for
dependente da substância, pouco importa que ela seja leve ou pesada. Por isso
descriminalizamos o consumidor de todas as drogas.
ISTOÉ -
Como a lei da descriminalização do consumidor foi implantada em Portugal?
JOÃO
GOULÃO - A descriminalização foi proposta por uma comissão da qual fiz parte,
passou no Parlamento e a lei entrou em vigor em 2001. O impacto das drogas na
vida da comunidade baixou drasticamente. O problema da toxidependência era
tão devastador que, quando aconteceu a descriminalização, o povo apoiou, pois
quase todos tinham dependentes na família. Costumavam dizer: “Meu filho não é
um bandido. É um desgraçado.” Antes tínhamos 100 mil usuários de heroína,
hoje não chegamos aos 30 mil. A criminalidade ligada à dependência baixou.
Tanto que, hoje, as drogas, que eram a primeira preocupação dos portugueses,
ocupam o 13º lugar.
ISTOÉ -
Antes da lei o que era feito com os dependentes?
JOÃO
GOULÃO - Iam para o tribunal. Na maior parte dos casos, não eram condenados à
prisão. Os juízes optavam por penas alternativas ou tratamento compulsório em
unidades terapêuticas. Não existe nada pior do que uma lei que não é
cumprida. A lei determinava a reclusão, mas os dependentes não eram
condenados à cadeia.
ISTOÉ -
O sr. acredita que Brasil esteja preparado para descriminalizar o consumo de
drogas?
JOÃO
GOULÃO - Eu diria que no Brasil há uma carência de respostas públicas. O
fenômeno da droga e da dependência tem de ser abordado por algum órgão, a
Justiça ou a Saúde. Não podemos retirá-la da Justiça e não ter as respostas
da Saúde. As próprias autoridades policiais, ao terem uma abordagem mais
amigável em relação aos usuários, necessitam de estruturas de saúde que
possam se ocupar deles. Senão, fica o vazio: nem há perseguição policial nem
oferta de tratamento.
ISTOÉ -
A tolerância com as drogas no mundo do entretenimento não é uma influência
negativa para os jovens?
JOÃO
GOULÃO - É um mau modelo. Procuramos contrabalançar isso convidando alguns
artistas para participar de campanhas. O problema é que depois se descobria
que eles também eram usuários. O nosso trabalho preventivo é permitir que as
pessoas façam suas escolhas informadas. Usar ou não usar é uma questão
individual. Mas consciente dos riscos.
ISTOÉ -
Como funciona a política de drogas em Portugal?
JOÃO
GOULÃO - O sistema de cuidados com a saúde dos toxicodependentes é dos mais
perfeitos do mundo. Pena que somente seja referida como exemplar a questão da
descriminalização, que está longe de ser a nossa melhor estratégia. É apenas
um componente importante, mas só demos esse passo depois de termos fixado a
responsabilidade de lidar com o problema no Ministério da Saúde mais do que no
Ministério da Justiça. O dependente é doente, precisa de ajuda médica e não
de prisão. O interessante da descriminalização foi tornar nosso sistema
coerente. Temos uma população de dez milhões de habitantes e uma rede de
saúde dedicada apenas aos usuários de drogas que envolve cerca de dois mil
profissionais, 70 unidades de ambulatório em todo o país e mais de 100
unidades terapêuticas com cerca de dois mil lugares disponíveis. Tudo
gratuito.
ISTOÉ -
E qual é o papel da polícia nesse processo?
JOÃO
GOULÃO - É assim: o usuário está consumindo a droga e é interceptado pela
polícia. Dali, é conduzido à delegacia, onde é identificada a substância. Se
tiver mais do que a quantidade considerada para uso pessoal, presume-se que
seja tráfico e ele vai para o sistema criminal. Existe uma tabela para cerca
de dez dias de consumo que dá 15 gramas de maconha, cinco de haxixe, uma de
heroína, etc. Se tiver menos, é usuário e será intimado pela polícia a se
apresentar em uma comissão do Ministério da Saúde chamada Comissão para
Dissuasão da Toxicodependência, constituída por um jurista, um psicólogo e um
assistente social. A pessoa é obrigada a se apresentar em três dias.
Primeiro, avalia-se se é um dependente ou um consumidor de ocasião. No caso
do dependente, a comissão o convida para se tratar. O dependente vive
dividido entre o desejo de parar e a vontade de consumir. Um pequeno empurrão
pode ser determinante para que se aproxime do sistema de saúde ou da droga.
ISTOÉ -
Não fica o registro da passagem dele na polícia?
JOÃO
GOULÃO - Se o dependente aceitar o tratamento, o processo é suspenso por
alguns meses e não é aplicada nenhuma sanção. Se nesse período ele não voltar
a ser interceptado pela polícia consumindo droga, o processo é extinto, sem
deixar rastro, registro criminal, sem mancha alguma na vida pregressa dele.
ISTOÉ -
E se for pego novamente?
JOÃO
GOULÃO - Aí pode ser aplicada uma penalidade. No caso do dependente,
nunca é multa em dinheiro. Pode ser proibição de frequentar determinados
locais, privação de benefícios sociais, pode ser proibido de viajar para o
exterior, de dirigir. É uma lista longa, que inclui ainda trabalho
comunitário. Prisão nunca.
ISTOÉ -
Não há internação?
JOÃO
GOULÃO - Quem assumir o acompanhamento do dependente discutirá com ele qual a
melhor via de tratamento, e a internação é uma delas. O nosso problema
principal é a heroína e, neste caso, trata-se da terapia de substituição pela
(medicação) metadona. Há várias outras modalidades terapêuticas.
ISTOÉ -
E quanto aos consumidores recreativos?
JOÃO
GOULÃO - A equipe técnica tenta identificar quais os fatores que levam a
pessoa a caminhar para a dependência. É avaliada a história familiar, social
e o perfil psicológico do indivíduo. A intenção é interromper o mais
precocemente possível esse trajeto.
ISTOÉ -
E se eles voltarem a se drogar?
JOÃO
GOULÃO - Se reincidir no período de suspensão do processo, terá a obrigação
de se apresentar periodicamente ao sistema, onde será avaliado. Se continuar,
pode ser multado em até 500 euros e receber outras penas.
ISTOÉ -
Vocês tratam somente os usuários flagrados pela polícia?
JOÃO
GOULÃO - Não. Essa é uma das vias de acesso ao nosso sistema de
tratamento.Tratamos por ano sete mil pessoas encaminhadas pela Comissão de
Dissuasão. E temos por volta de 50 mil pessoas em tratamento nos nossos
centros. Muitos vão voluntariamente, enviados por médicos ou pela família. É
um sistema forte. Nosso orçamento é de 75 milhões de euros por ano.
Atualmente, estamos com algumas dificuldades em função da crise econômica,
mas temos conseguido sucesso. Tanto que há três anos estendemos nosso
programa aos dependentes de álcool.
ISTOÉ -
E a reação dos policiais?
JOÃO
GOULÃO - A polícia não via sentido em prender viciados. Ela não tem mais que
instruir processo nem fazer investigação sobre dependentes. A polícia passou
a ter mais tempo para se dedicar às investigações sobre o grande tráfico. A
eficácia aumentou enormemente na apreensão de carregamentos de drogas.
ISTOÉ -
Não se prende o usuário, mas como ele compra o que é proibido?
JOÃO
GOULÃO - Os traficantes passaram a fazer mais viagens. Em vez de andar com
grandes quantidades, carregam o mínimo. Caso sejam interceptados, alegam que
é para consumo próprio. Mas, se a polícia tiver evidência de que era para
venda, mesmo com as quantidades toleradas, ele vai para o sistema prisional.
Assim como pode ocorrer o contrário. O sistema é flexível.
ISTOÉ -
Na Holanda existem cafés e bares que vendem maconha. Em Portugal existe isso?
JOÃO
GOULÃO - Não. A Holanda não descriminalizou o consumo. Foi uma tentativa de
separar o comércio das drogas ditas leves das pesadas e para isso foi
autorizada a venda das chamadas drogas leves. Mas a coisa não ocorreu como se
esperava. Muita gente ia para a Holanda somente para se drogar, é o turismo
da droga! Os holandeses já determinaram que pessoas de outros países não
podem mais comprar maconha no coffee shop. Mais dia, menos dia, haverá
proibição total.
ISTOÉ -
Qual a sua avaliação sobre o modo como o Brasil trata seus dependentes?
JOÃO
GOULÃO - Parece-me necessário um esforço extra para haver respostas de saúde
dirigidas à população dependente, como acesso facilitado a tratamentos. As
instituições de saúde generalistas não têm capacidade de atender esse
público. É complicado uma mesma unidade atender uma grávida e um drogado. No
Brasil seria bom criar uma ampla rede de centros, mas pelas dimensões do País
é difícil. Cada Estado ou município deveria assumir essa responsabilidade.
ISTOÉ -
Menores das Cracolândias são internados à força. Como avalia isso?
JOÃO
GOULÃO - O tratamento compulsório é complicado. Poderiam ser criadas instâncias
em que fosse trabalhada a motivação para o tratamento.
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