Revista
Época - Marcelo Osakabe e Marcelo Moura
Droga
símbolo dos anos 1960, o ácido lisérgico está de volta às pesquisas
acadêmicas, com resultados promissores para a cura de problemas como a
depressão
Califórnia,
Estados Unidos, 1971. Um detento da prisão de San Luis Obispo sobe até o
telhado e, pendurado em cabos de telefonia, atravessa o pátio e pula o muro.
Do lado de fora, um carro o aguardava. Dias depois, ele chegou à Argélia, sob
os cuidados do grupo revolucionário Panteras Negras. O fugitivo era Timothy
Leary, doutor em psicologia formado pela Universidade Berkeley e professor de
Harvard. Ou, nas palavras do então presidente dos EUA, Richard Nixon, “o
homem mais perigoso da América”. Leary foi o principal ativista dos usos
medicinais e recreativos do alucinógeno LSD, na década de 1960. Quando a
droga foi proibida pelo governo americano em 1970, até para pesquisas
científicas, Leary decidiu seguir sua campanha como um fora da lei.
A imagem
de Leary se confunde com a do ácido: aceito socialmente nos anos 1950 e 1960,
maldito a partir da década de 1970 e atualmente em processo de
redenção. Há cerca de 20 estudos em andamento no mundo sobre LSD, um
renascimento do uso terapêutico da droga.
Leary
entrou em contato com o LSD como pesquisador da Universidade Harvard, em
1960. Ele integrou os esforços para explorar o potencial do LSD-25 (25ª
variação descoberta do Lysergsäurediethylamid, que em alemão significa
“dietilamida do ácido lisérgico”), droga sintetizada pelo cientista suíço
Albert Hoffman em 1938. Em 1943, Hoffman ingeriu alguns cristais da
substância e descobriu suas propriedades alucinógenas. “Fiquei tonto”, disse.
“De olhos fechados, via uma torrente de cores, como um caleidoscópio.” Dono
da patente da substância, o laboratório suíço Sandoz distribuiu a droga para
pesquisadores, como Leary, em busca de utilidades que motivassem seu
comércio. Não havia nada de subversivo nisso. No fim dos anos 1960, mais de
700 pesquisas no mundo avaliavam o emprego de alucinógenos como o LSD em
terapias contra esquizofrenia e depressão, além de aumento da criatividade.
Só o serviço secreto de inteligência dos Estados Unidos (CIA) conduziu mais
de 400 projetos com drogas, a maior parte com LSD, ao custo estimado em US$
25 milhões, segundo um artigo de 1977 da revista especializada Psicology
Today.
A
mensagem:
Para a sociedade
Proibições refletem a época em que foram impostas. Suas razões devem ser
repensadas com frequência
Para a
ciência
A interdição de uma pesquisa muda para sempre a produção de conhecimento
Na
forma de cápsulas e ampolas, com o nome Delysid, o ácido chegou às farmácias.
Como ocorre hoje com remédios como o Rivotril, a exigência de receita médica
era mera formalidade. Psicólogos e pacientes estavam ávidos por experimentar
o medicamento capaz de abrir as “portas da percepção” – expressão associada
ao efeito dos alucinógenos que batizou um livro do escritor Aldous Huxley e
inspirou o nome da banda The Doors. Os atores Jack Nicholson e Cary Grant se
ofereceram como voluntários das pesquisas.
Grant disse que se tornou uma nova
pessoa graças ao LSD. “Encontrei quem eu era por trás de todos os disfarces,
hipocrisias e vaidades. Me desfiz deles, camada por camada.” Segundo a revista
americana Vanity Fair, cerca de 40 mil pessoas no mundo todo experimentaram o
LSD entre 1950 e 1965.
Leary
tornou-se um apóstolo do LSD depois de uma viagem ao México, em 1960. “Foi a
experiência religiosa mais profunda de minha vida”, disse. Ele viu nas drogas
o potencial de curar pessoas e a própria sociedade. Pela universidade,
pesquisou a droga em detentos de uma colônia penal e num grupo de
seminaristas. Os estudos de Leary foram interrompidos em 1963, quando a
diretoria de Harvard descobriu que estudantes consumiam o estoque da droga
destinado à pesquisa. Leary foi expulso. Fora da academia, passou a defender
abertamente o uso recreativo da droga, circulando entre celebridades da
contracultura, como os escritores Aldous Huxley, Jack Kerouac e Allen
Ginsberg.
A
pregação de Leary influenciou os Beatles, que devem algumas canções ao LSD.
“‘Day tripper’ é uma delas”, disse Paul McCartney, em 2004. “‘Lucy in the
sky’ é outra, obviamente.” Autor de “Lucy in the sky with diamonds” (“Lucy no
céu com diamantes”), John Lennon, em vida, negou que o título da música fosse
uma referência às iniciais LSD. “Lucy era uma amiga de meu filho Julian”,
disse. Mas Lennon não escondia sua intimidade com o ideólogo do ácido. Leary
é uma das vozes na gravação do hino pacifista Give peace a chance, de Lennon.
O LSD inspirou outras estrelas, como Eric Clapton e Jim Morrison, e
desconhecidos que chegariam à fama décadas depois, como o fundador da Apple,
Steve Jobs. “Tomar LSD foi uma das duas ou três coisas mais importantes de
minha vida”, disse Jobs.
O
consumo desmedido de alucinógenos, defendido por Leary, era temerário. Sem
limites, mesmo substâncias legalizadas, como bebidas alcoólicas, trazem
consequências desastrosas. “O LSD pode danificar o sistema neurológico, se
for tomado sem responsabilidade”, diz Amanda Beckley, criadora da fundação
Beckley, que apoia pesquisas com drogas alucinógenas. “A dose de LSD era
cinco a dez vezes maior que a aplicada hoje.” Não tardou para que relatos de
pessoas que pularam de prédios ou desenvolveram algum tipo de psicose
começassem a ganhar visibilidade. Em março de 1966, a revista americana Life
publicou na capa a reportagem “LSD: a ameaça explosiva da droga que saiu do
controle”. Quando Richard Nixou conquistou a Presidência dos Estados Unidos,
em 1968, o combate às drogas foi um dos motes de sua campanha vitoriosa.
“Espero salvar centenas de milhares de vidas que, expostas ao vício, poderiam
ser moral, física e mentalmente destruídas”, afirmou Nixon, em 1969, ao
propor ao Congresso americano uma lei mais dura contra os entorpecentes.
Aprovada
em 1970, a Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control Act enquadrou o
LSD e outros alucinógenos na categoria das drogas mais perigosas, proibidas
não apenas para consumo, como também para pesquisa. No ano seguinte, a
Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu proibição semelhante, em
nível mundial. “Nixon buscou erradicar o consumo de drogas proibindo até a
pesquisa e o uso medicinal”, diz Pedro Abramovay, professor de Direito da
Faculdade Getulio Vargas. A proibição na ONU acabou por igualar traficantes e
cientistas e fechou as torneiras de recursos em países onde ainda era
permitido pesquisar. “Depois de 1972, ficou impossível conseguir
financiamento para novos estudos”, afirma Richard Doblin, doutor em políticas
públicas pela Universidade Harvard e fundador da Associação Multidisciplinar
de Estudos Psicodélicos (Maps).
O futuro da droga do passado
Novos estudos científicos sugerem que terapias com LSD podem resolver
problemas atuais
Depressão
O pesquisador suíço Peter Gasser concluiu no ano passado o primeiro estudo
com LSD feito em 35 anos. Ele afirma que o consumo de ácido lisérgico,
associado à psicoterapia, reduziu os níveis de ansiedade dos 12 participantes
de sua análise. O teste será refeito com grupos maiores
Alcoolismo
Pesquisadores da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia e de Harvard
analisaram seis estudos com LSD feitos nos anos 1960, para tratar de
alcoolismo. “Surgiram evidências claras do benefício do LSD”, disse o jornal
da Psicofarmacologia.
Dor de cabeça
O psiquiatra John Halpern, de Harvard, testou com sucesso o tratamento de
dores de cabeça com bromo-LSD, uma variante não alucinógena do ácido. Sem
encontrar interesse de grandes laboratórios, Halpern fundou uma empresa, a
Entheogen, para produzir um remédio
As portas da pesquisa com alucinógenos só foram reabertas na década de
1990, quando a Food and Drug Administration (FDA), autoridade de saúde dos
Estados Unidos, igualou a classificação das drogas psicodélicas à de
substâncias como ópio e anfetamina, livres para estudo. Os resultados da
liberação começam a aparecer. Em 2011, o doutor em psiquiatria Peter Gasser
concluiu uma pesquisa de LSD no tratamento para depressão (leia o quadro ao
lado). Foi o primeiro estudo completo, após quatro décadas de proibição.
“Diante de efeitos benéficos tão evidentes, é intrigante por que terapias com
LSD foram tão abertamente ignoradas”, afirmou o neurocientista norueguês
Pal-Orjan Johansen, autor de uma pesquisa sobre o uso do LSD no combate ao
alcoolismo.
Uma das
explicações para a longa proibição do LSD é a influência decisiva das
questões morais no curso das descobertas científicas. A história do LSD é um
capítulo do histórico conflito entre o racionalismo científico e os dogmas
que permeiam o senso comum da sociedade. Quando propôs a proscrição do LSD,
Nixon tinha argumentos objetivos a seu favor, como altos índices de violência
associada a drogas, mas não escondeu que aquela era, sobretudo, uma cruzada
moral. São essas questões que fazem os governos interferir no trabalho dos
laboratórios, autorizando e proibindo procedimentos, concedendo e negando
recursos. Outro exemplo da influência das questões morais na evolução da
ciência é a polêmica na autorização de pesquisas com células-tronco
embrionárias. Promissoras no tratamento de doenças hoje incuráveis do sistema
nervoso, mas combatidas por religiosos, elas só foram liberadas no Brasil em
2008.
O
debate sobre moral e os limites da ciência é necessário, mas traz lentidão e
até prejuízos ao desenvolvimento científico. As duas décadas de intervalo
entre proibição e liberação das pesquisas com drogas alucinógenas não
significaram apenas um atraso no desenvolvimento de novas terapias. Os
estudos que poderiam ter ocorrido na década de 1970 jamais serão retomados,
uma vez que as patentes dessas substâncias já caíram em domínio público.
“Nenhum grande laboratório financia pesquisas sem a perspectiva de
monopolizar o mercado”, diz Amanda. “Eles não querem descobrir no LSD um
rival para remédios que já têm.”
As
novas pesquisas com alucinógenos são financiadas por doadores sem finalidades
comerciais, como o cantor Sting ou o fundador do Napster, Sean Parker. Gente
de mente e bolsos abertos também bancou os últimos dias de Timothy Leary.
Após sua fuga espetacular da prisão, em 1971, ele entrou em acordo com o
governo americano, cumpriu pena de três anos e moderou suas ações. Morto em
1996, vítima de câncer, ele durou o bastante para ver a retomada dos estudos com
a droga a que dedicou a vida. Após a cremação, 7 gramas de suas cinzas foram
embarcados no foguete espacial Pegasus, que ficou em órbita por seis anos até
se desintegrar na atmosfera. Timothy e seus cristais de LSD ficaram no céu,
como a Lucy da música psicodélica.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário