Heroína contaminada
com Antrax causa pânico no Reino Unido
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Folha de S. Paulo
AMELIA HILL
DO "GUARDIAN"
Quando Cath injetou heroína em sua veia sem saber que a droga estava contaminada por Antrax, seu pulso imediatamente começou a inchar e enrubescer. A dor foi chocante. Mas a única coisa que ela sentia era raiva e irritação.
"Eu queria o barato que a droga costumava me dar", conta. "Fui viciada em heroína por 23 anos. Sabia que tinha me injetado corretamente. Não conseguia entender por que a droga não estava fazendo efeito".
AMELIA HILL
DO "GUARDIAN"
Quando Cath injetou heroína em sua veia sem saber que a droga estava contaminada por Antrax, seu pulso imediatamente começou a inchar e enrubescer. A dor foi chocante. Mas a única coisa que ela sentia era raiva e irritação.
"Eu queria o barato que a droga costumava me dar", conta. "Fui viciada em heroína por 23 anos. Sabia que tinha me injetado corretamente. Não conseguia entender por que a droga não estava fazendo efeito".
Por isso, ela se injetou uma segunda vez. E isso fez com que todo seu
braço inchasse. A cor vermelha se intensificou, chegando a ficar púrpura. O
inchaço subiu em direção ao cotovelo e desceu aos dedos. A dor se intensificou,
mas o barato da droga ainda assim não chegou.
Isso aconteceu em 2010, e Cath havia se intoxicado no ápice do maior
surto de fonte única de Antrax humano a ser registrado no Reino Unido em mais
de 50 anos. As mortes se espalharam pela Europa: 126 casos foram identificados,
na contagem final, entre os quais 119 no Reino Unido. Pelo menos 14 pessoas
morreram.
Esta semana, especialistas em saúde pública informaram que um segundo
usuário de drogas morreu por Antrax em Blackpool, no noroesta da Inglaterra,
semanas depois da primeira morte na cidade.
Durante o surto de 2010, todos conheciam o risco, na comunidade de Cath.
A clínica onde ela obtinha agulhas limpas tinha cartazes alertando que o uso de
heroína contaminada com Antrax podia matar, e oferecendo uma lista de sintomas.
Notícias de mortes e amputações causadas pela doença começaram a se espalhar
como rumores entre os usuários de drogas. Mas Cath não se importou. "Eu
desviava o olhar dos cartazes", conta. "Não considerava meu corpo
como algo que eu precisasse manter vivo. Era só uma porção de pele com veias
nas quais eu podia injetar a droga".
Naquele dia, enquanto ela contemplava seu braço escurecendo, de púrpura
a preto, a única coisa que ela sentia era irritação, porque a droga não fazia o
efeito esperado. Cath se injetou pela terceira vez. E por fim começou a fazer
efeito.
Quando acordou, horas mais tarde, estava suando demais e sentia uma dor
fortíssima no braço. "Ainda assim não me ocorreu que a heroína estivesse
contaminada", disse. "Pensei que era só outro abscesso".
Cath estava tão acostumada a abscessos que mal se incomodava em procurar
o hospital para tratá-los, não se importando com o fato de que os médicos
consideraram a hipótese de amputar seus braços e pés em mais de uma ocasião.
SORTE
Passados três dias, porém, ela não conseguia mais suportar a dor. Quando
o Antrax foi diagnosticado, ela passou a ser tratada com aplicação intravenosa
de antibióticos, e a única veia praticável para a sonda estava em seu pescoço.
Cath foi informada de que uma amputação era a opção mais provável, mas que
havia possibilidade de morte.
"Eu não conseguia racionalizar que tinha Antrax", conta.
"Para mim, Antrax era coisa de guerra, terrorismo. Tudo que me preocupava
era que, se amputassem meu braço direito, teria de aprender a me injetar com o
esquerdo".
Cath teve sorte. Os antibióticos conseguiram derrotar a infecção, e por
isso no quarto dia de tratamento ela recebeu uma dose diária de 28 pílulas para
duas semanas de tratamento e teve alta. A primeira coisa que fez ao sair do
hospital foi ligar para o traficante.
Na semana passada, pela primeira vez desde o surto de 2010, o Centro
Europeu de Prevenção e Controle de Doenças e o Centro Europeu de Monitoração de
Drogas e Vício em Drogas admitiram que a Europa estava de novo sob o efeito de
um surto de Antrax, provavelmente vinculado a heroína contaminada.
Desde o começo de junho, dez casos foram identificados na Europa. A
recomendação oficial da Agência de Proteção à Saúde (HPA) britânica é a de que
um aumento no número de casos deve ser esperado.
"É provável que sejam identificados novos caso entre as pessoas que
injetam heroína, como parte do surto que vem acontecendo nos países da União
Europeia", disse o Dr. Fortune Ncuba, especialista em vírus transmitidos
pelo sangue na HPA.
"O Departamento da Saúde alertou o Serviço Nacional de Saúde quanto
à possibilidade de que as pessoas que usam drogas injetáveis procurem
prontos-socorros e clínicas com sintomas que sugerem Antrax."
Determinar de que maneira o Antrax chegou à heroína é algo que vem
intrigando a polícia e os especialistas em saúde. Em 2010, a contaminação no
Reino Unido terminou por ser rastreada a um lote infectado com esporos de
Antrax provenientes de um bode ou couro de bode infectado, em algum lugar do
percurso entre o Afeganistão ou Paquistão e a Escócia, provavelmente na
Turquia.
Há outras causas possíveis. A heroína pode ser contaminada naturalmente,
caso as papoulas sejam colhidas em terra na qual um animal vítima de Antrax
tenha sido sepultado. Também pode ser infectada caso ossos de animais infectados
sejam usados no processo de curagem.
CONSELHOS
Qualquer que seja a fonte, os especialistas criticam vigorosamente os
conselhos dados aos usuários de drogas nos últimos 15 dias.
Muitas vezes, quando há temores de saúde entre os usuários, os conselhos
do governo, via agências de tratamento, envolvem o uso de drogas de modo mais
seguro. No caso do HIV, por exemplo, os usuários de drogas são encorajados a
recorrer a postos que fornecem agulhas limpas.
Desta vez, o conselho era mais simples: deixar de usar heroína e buscar
ajuda nos centros locais de tratamento, que podem oferecer apoio na forma de
medicamentos substitutos.
De acordo com os especialistas, essa é uma ideia impraticável. Eles
afirmam que, em um ambiente no qual um usuário pode levar seis meses para obter
acesso a substitutos de heroína como a metadona ou o Subutex, pedir que os
usuários deixem de usar a droga é inútil.
A Agência Nacional de Tratamento para Abuso de Drogas contesta esse
prazo. Diz que o tempo médio de espera para obter tratamento na Inglaterra é de
cinco dias --o mais baixo de todos os tempos-- e que em casos de emergência o
prazo é ainda menor.
"A campanha da HPA presume que os usuários saibam o que estão
fazendo", diz Mark Styles, diretor dos centros de tratamento DetoxPlus e Pierpoint,
em St-Annes-on-Sea, perto de Blackpool. "Mas isso é supor demais".
Styles já tratou de meia dúzia de casos de contaminação por Antrax, nos
16 anos de experiência que tem com usuários de heroína. "Eles não se
preocupam com o risco de injetar Antrax", afirma. "Dizer a um viciado
em drogas que ele precisa parar de usar a droga é como me dizer que não posso
beber água".
Scott March concorda. Viciado por 16 anos, ele passou por uma
desintoxicação bem-sucedida no ano passado. March conhece pelo menos quatro
pessoas que morreram por conta de heroína contaminada com Antrax.
"Usar drogas era apavorante, sabendo que podiam conter Antrax, mas
a vontade de usar é tão forte que não existe medo suficientemente intenso para
detê-lo", diz. "Mesmo que você saiba que há heroína contaminada em
sua seringa, o medo talvez não seja suficiente. A negação é mais forte".
No improvável caso de que um usuário esteja de fato preocupado com
infecção, acrescenta Styles, não seria comum que ele percebesse a infecção no
começo. "Os sintomas de Antrax são fracos, se comparados aos horríveis
efeitos físicos do uso da heroína. Os usuários sofrem tanto, de qualquer modo,
que nem perceberão a diferença", disse.
Cath sabia que podia se infectar de novo com Antrax, depois de deixar o
hospital. "As drogas contaminadas continuavam a circular", diz.
"Não parei de imediato, depois do Antrax, mas a doença mudou alguma coisa
em mim, de modo sutil".
Ela está livre de drogas há dois anos, o que inclui mais de um ano em
tratamento, e está treinando para ser massagista e aromaterapeuta. "Se eu
consegui deixar a droga, qualquer um conseguirá --com determinação e um bom
tratamento", diz.
"Me contaminei com Antrax, fui viciada por 23 anos, e tive de
chegar ao ponto de deixar de ser humana. Estava apodrecendo. Vivia como um
cachorro viralata e raivoso. Mas agora amo a vida e minha família tem orgulho
de mim. Quando me olha, minha mãe não tem mais angústia no olhar".
Tradução de PAULO
MIGLIACCI.
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