quinta-feira, 14 de março de 2013

Doenças psiquiátricas podem estar no DNA


A biologia e as “doenças inventadas”


O mais completo estudo genético sobre transtornos mentais revela o que a depressão, a hiperatividade e outras doenças têm em comum


Um dos mais completos estudos sobre a biologia dos transtornos mentais foi publicado nesta semana na revista científica The Lancet. O trabalho é resultado de um esforço internacional de 19 países, financiado em parte pelo governo americano. Os autores declararam não ter vínculos com a indústria farmacêutica ou outros conflitos de interesse.
O estudo apontou o que há em comum, do ponto de vista genético, entre cinco doenças: depressão, transtorno bipolar, autismo, esquizofrenia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
É mais uma valorosa contribuição ao combate da ignorância e do preconceito que penalizam as famílias que convivem com doenças psiquiátricas. É também mais um claro sinal de que essas não são “doenças inventadas”.
Os cientistas analisaram o genoma completo de 33 mil portadores desses distúrbios. Eles foram comparados a 28 mil pessoas não-afetadas pelas doenças. Em quatro diferentes regiões do DNA, foram identificadas variações genéticas que aumentam o risco de desenvolvimento de qualquer um dos cinco transtornos.
“Os resultados sugerem que é possível ir além da classificação baseada nos sintomas e focar nas causas biológicas das doenças psiquiátricas”, diz Jordan Smoller, do Massachussetts General Hospital, principal autor do estudo.
Duas das quatro variantes identificadas estão envolvidas na regulação dos canais de cálcio, o que é crucial para o funcionamento adequado das células nervosas. “Eles são fundamentais ao trabalho dos neurônios”, disse à revista Time Bryan King, diretor do departamento de psiquiatria da criança e do adolescente da Universidade de Washington. “O balanço de cálcio e cloreto é crítico para a adequada atividade elétrica dos neurônios”.
Essas descobertas genéticas são um primeiro passo. Falta compreender por que um problema nos canais de cálcio pode levar ao autismo em uma pessoa e, em outra, ao transtorno bipolar. Esse conhecimento pode contribuir para que a comunidade científica repense as doenças psiquiátricas que compartilham a mesma arquitetura genética.
Uma coisa precisa ficar clara: ter essas variações não é certeza de desenvolvimento de qualquer uma dessas doenças. Posso mandar analisar o meu genoma e descobrir que herdei essas variações. E daí? O que faço com essa informação? Por enquanto, nada.
Essas variações aumentam o risco de surgimento dessas doenças, mas não representam uma sina. Segundo o que se sabe até hoje, essas são doenças provocadas por alterações genéticas, fatores bioquímicos e ambientais (estresse, ambiente hostil etc). Os genes são apenas um pedaço da história, mas um pedaço importante.
Pode não parecer grande coisa, do ponto de vista prático, mas esse estudo é relevante. É assim, de grão em grão, fazendo ciência de qualidade, que o conhecimento avança.
É assim que a ciência comprova que transtornos psiquiátricos não são “doenças inventadas”. Eles existem, de fato. Negá-los é produzir confusão, é impingir sofrimento desnecessário aos doentes e às famílias.
Existe uma profusão de diagnósticos errados? É verdade. Prescrições inadequadas, banalização do uso de drogas psiquiátricas, crença de que elas possam ser a melhor solução para acalmar crianças irrequietas, cumprir as metas da empresa ou trazer a felicidade...Tudo isso existe, é gravíssimo e precisa ser combatido.
A evolução da medicina relegou a um segundo plano a subjetividade do paciente. As soluções aparecem em forma de comprimido. Com isso, muita gente se vê desobrigada de procurar as raízes da tristeza, do mal-estar, do desajuste.
Muita gente (em especial as crianças e os adolescentes) têm recebido medicamentos psiquiátricos, quando, na verdade, têm um problema psicológico – ou nem isso.
Por outro lado, estudos genéticos como o publicado nesta semana, o avanço do conhecimento sobre a química do cérebro e novas ferramentas de diagnóstico por imagem permitem detectar transtornos psiquiátricos genuínos em pessoas que antes poderiam passar a vida inteira sofrendo e sem receber a devida atenção. 
O que faz a diferença é a qualidade do diagnóstico. Se for correto, salva vidas. Se for errado, as destrói.
Por que, então, é tão difícil fazer um bom diagnóstico?
A Organização Mundial da Saúde reconhece a existência de todos os transtornos mentais citados neste texto. Nenhum deles é “doença inventada”. Para identificá-los, a maioria dos médicos se baseia num manual preparado pela Associação Americana de Psiquiatria, chamado DSM-IV. Ele lista os sintomas de todas as enfermidades psiquiátricas existentes.
O objetivo desse manual é padronizar os critérios entre os profissionais, mas essa não é uma ferramenta perfeita. O ponto central do bom diagnóstico é a história do paciente. O médico precisa saber ouvir, ter tempo – tudo o que é impossível fazer numa consulta de dez minutos.
Tudo seria mais fácil se fosse possível detectar um transtorno com um exame preciso como o de glicemia, que detecta diabetes. Infelizmente, isso não é possível. Infelizmente, a vida é mais complicada. Mas acreditar na existência de “doenças inventadas” não melhora a realidade.
Se pudesse, a indústria farmacêutica criaria uma doença por dia. Se pudesse, adotaria estratégias de vendas ainda mais nocivas e agressivas do que as praticadas hoje. Tudo isso precisa ser conhecido. Todos os abusos precisam ser denunciados.
No entanto, não me parece que as condições da humanidade tenham piorado depois que a vida moderna foi “medicalizada”. Ainda prefiro viver num mundo que dispõe de penicilina, vacinas, analgésicos, quimioterápicos... E também de drogas psiquiátricas para quem precisa.
E você? O que achou desse estudo? Transtornos mentais são “doenças inventadas”? Conhece alguém que usa drogas psiquiátricas? Conte pra gente. Queremos ouvir sua história.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

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