A
biologia e as “doenças inventadas”
O mais completo estudo genético sobre transtornos
mentais revela o que a depressão, a hiperatividade e outras doenças têm em
comum
Um dos mais completos
estudos sobre a biologia dos transtornos mentais foi publicado nesta semana na
revista científica The Lancet. O trabalho é resultado de um esforço internacional de 19 países, financiado em parte
pelo governo americano. Os autores declararam não ter vínculos com a indústria
farmacêutica ou outros conflitos de interesse.
O estudo apontou o que há em comum, do ponto de vista
genético, entre cinco doenças: depressão, transtorno bipolar, autismo,
esquizofrenia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
É mais uma valorosa contribuição ao combate da ignorância e
do preconceito que penalizam as famílias que convivem com doenças
psiquiátricas. É também mais um claro sinal de que essas não são “doenças
inventadas”.
Os cientistas analisaram o genoma completo de 33 mil
portadores desses distúrbios. Eles foram comparados a 28 mil pessoas
não-afetadas pelas doenças. Em quatro diferentes regiões do DNA, foram
identificadas variações genéticas que aumentam o risco de desenvolvimento de
qualquer um dos cinco transtornos.
“Os resultados sugerem que é possível ir além da classificação
baseada nos sintomas e focar nas causas biológicas das doenças psiquiátricas”,
diz Jordan Smoller, do Massachussetts General Hospital, principal autor do
estudo.
Duas das quatro variantes identificadas estão envolvidas na
regulação dos canais de cálcio, o que é crucial para o funcionamento adequado
das células nervosas. “Eles são fundamentais ao trabalho dos neurônios”, disse
à revista Time Bryan King, diretor do departamento de psiquiatria da criança e do
adolescente da Universidade de Washington. “O balanço de cálcio e cloreto é
crítico para a adequada atividade elétrica dos neurônios”.
Essas descobertas genéticas são um primeiro passo. Falta
compreender por que um problema nos canais de cálcio pode levar ao autismo em
uma pessoa e, em outra, ao transtorno bipolar. Esse conhecimento pode
contribuir para que a comunidade científica repense as doenças psiquiátricas
que compartilham a mesma arquitetura genética.
Uma coisa precisa ficar clara: ter essas variações não é
certeza de desenvolvimento de qualquer uma dessas doenças. Posso mandar
analisar o meu genoma e descobrir que herdei essas variações. E daí? O que faço
com essa informação? Por enquanto, nada.
Essas variações aumentam o risco de surgimento dessas
doenças, mas não representam uma sina. Segundo o que se sabe até hoje, essas
são doenças provocadas por alterações genéticas, fatores bioquímicos e
ambientais (estresse, ambiente hostil etc). Os genes são apenas um pedaço da
história, mas um pedaço importante.
Pode não parecer grande coisa, do ponto de vista prático,
mas esse estudo é relevante. É assim, de grão em grão, fazendo ciência de
qualidade, que o conhecimento avança.
É assim que a ciência comprova que transtornos
psiquiátricos não são “doenças inventadas”. Eles existem, de fato. Negá-los é
produzir confusão, é impingir sofrimento desnecessário aos doentes e às
famílias.
Existe uma profusão de
diagnósticos errados? É verdade. Prescrições inadequadas, banalização do uso de
drogas psiquiátricas, crença de que elas possam ser a melhor solução para
acalmar crianças irrequietas, cumprir as metas da empresa ou trazer a
felicidade...Tudo isso existe, é gravíssimo e precisa ser combatido.
A evolução da medicina relegou a um segundo plano a
subjetividade do paciente. As soluções aparecem em forma de comprimido. Com
isso, muita gente se vê desobrigada de procurar as raízes da tristeza, do
mal-estar, do desajuste.
Muita gente (em especial as crianças e os adolescentes) têm
recebido medicamentos psiquiátricos, quando, na verdade, têm um problema
psicológico – ou nem isso.
Por outro lado, estudos genéticos como o publicado nesta
semana, o avanço do conhecimento sobre a química do cérebro e novas ferramentas
de diagnóstico por imagem permitem detectar transtornos psiquiátricos genuínos
em pessoas que antes poderiam passar a vida inteira sofrendo e sem receber a
devida atenção.
O que faz a diferença é a qualidade do diagnóstico. Se for
correto, salva vidas. Se for errado, as destrói.
Por que, então, é tão difícil fazer um bom diagnóstico?
A Organização Mundial da Saúde reconhece a existência de
todos os transtornos mentais citados neste texto. Nenhum deles é “doença inventada”.
Para identificá-los, a maioria dos médicos se baseia num manual preparado pela
Associação Americana de Psiquiatria, chamado DSM-IV. Ele lista os sintomas de
todas as enfermidades psiquiátricas existentes.
O objetivo desse manual é padronizar os critérios entre os
profissionais, mas essa não é uma ferramenta perfeita. O ponto central do bom
diagnóstico é a história do paciente. O médico precisa saber ouvir, ter tempo –
tudo o que é impossível fazer numa consulta de dez minutos.
Tudo seria mais fácil se fosse possível detectar um
transtorno com um exame preciso como o de glicemia, que detecta diabetes.
Infelizmente, isso não é possível. Infelizmente, a vida é mais complicada. Mas
acreditar na existência de “doenças inventadas” não melhora a realidade.
Se pudesse, a indústria farmacêutica criaria uma doença por
dia. Se pudesse, adotaria estratégias de vendas ainda mais nocivas e agressivas
do que as praticadas hoje. Tudo isso precisa ser conhecido. Todos os abusos
precisam ser denunciados.
No entanto, não me parece que as condições da humanidade
tenham piorado depois que a vida moderna foi “medicalizada”. Ainda prefiro
viver num mundo que dispõe de penicilina, vacinas, analgésicos,
quimioterápicos... E também de drogas psiquiátricas para quem precisa.
E você? O que achou desse estudo? Transtornos mentais são
“doenças inventadas”? Conhece alguém que usa drogas psiquiátricas? Conte pra
gente. Queremos ouvir sua história.
(Cristiane Segatto escreve às
sextas-feiras)
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