sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Dependência de remédios supera a de cocaína, entre as mulheres


Alguns remédios têm efeito parecido com álcool em motorista

Governo desiste de colocar mensagens sobre os riscos de dirigir nas embalagens dos medicamentos perigosos

Fernanda Aranda, iG São Paulo | 17/02/2012 06:59

Por trás das 35 mil mortes registradas todos os anos no Brasil podem estar motoristas entorpecidos por medicamentos que nem imaginavam o perigo de misturar direção e remédio.
Pesquisas internacionais vêm mostrando que as drogas terapêuticas, em especial as para tratar depressão, insônia, diabetes e Parkinson, têm efeitos nocivos na concentração, na coordenação motora e no aumento da sonolência, danos similares aos provocados pela ingestão de bebida alcoólica.
“Ainda assim, este é assunto pouco explorado por médicos, farmacêuticos e autoridades do trânsito no Brasil”, afirma o toxicologista forense Tarso Bortolini, que pesquisa justamente os efeitos dos medicamentos na condução de veículos.
“Não há estatísticas nacionais sobre os acidentes no tráfego que envolvem usuários de medicamentos. Não há informação para a população e nem campanhas suficientes sobre os riscos.”
No País, afirma o diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves, algumas características potencializam ainda mais o perigo dos remédios para os condutores.
“Uma delas, é a automedicação, mesmo quando se trata de drogas controladas. Isso faz com que o usuário nem receba a orientação médica ou farmacêutica sobre o dano e não pondere isso antes de pegar as chaves do carro”, diz Alves.
Outro fator é o aumento, considerado exagerado por parte dos especialistas, do consumo de antidepressivos, tranquilizantes e calmantes. Em 4 anos, mostra levantamento feito a pedido do iG, a ampliação da venda para os brasileiros foi de 49%. Entre as mulheres do País, a dependência de remédios supera a de cocaína, detectou pesquisa feita pelo Instituto de Psiquiatria da USP.
“Sem contar que as pessoas costumam misturar drogas e álcool, o que é um coquetel letal para quem dirige”, completa Alves.
“Há muitos anos pedimos que esta questão dos medicamentos ganhe mais espaço nas campanhas. Mas ainda não tivemos a reivindicação atendida.”
Na gaveta
Em 2009, o governo brasileiro até ensaiou regulamentar o tema, mas o projeto não andou. Na época, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu consulta pública para que a mensagem “se tomar este remédio não dirija” viesse estampada na embalagem de todas as medicações que impõem risco à direção de veículos – e não apenas em letras miúdas nas bulas – para aumentar a conscientização sobre o tema. O mesmo projeto propunha uma imagem (pictograma) parecida com o símbolo de “não fume” para acompanhar estes medicamentos.
Procurada pela reportagem, a Anvisa informou, por email: “o grupo entendeu que a criação de pictogramas de alerta é uma atividade bastante complexa para o tempo disponível para a revisão da norma (das embalagens)”.
“Além disso, teríamos a necessidade de avaliar a compreensão dos pictogramas pela população, através de uma pesquisa de campo, o que demandaria a elaboração de um projeto específico e financiamento para o mesmo. Por esse motivo, nesta revisão, a questão dos pictogramas não foi tratada”, completou a nota.
O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), simultaneamente ao lançamento da proposta da Anvisa, também quis trazer o alerta à tona mas tampouco prosseguiu com a ideia. O então Ministro das Cidades, Márcio Fortes – pasta que coordena o Denatran – declarou na época que uma espécie de “lei seca” para usuários de medicações estava em análise.
Para isso, o órgão responsável pela malha viária brasileira iria acionar o Ministério da Saúde para que este fizesse uma lista com os medicamentos mais perigosos aos motoristas, o primeiro passo para uma possível regulamentação.
O Denatran afirmou agora, via assessoria de imprensa, que três anos depois “a pasta da saúde não chegou a ser demandada porque em reuniões técnicas não ficou clara a viabilidade de uma fiscalização.”
Vários remédios
Se não houve consenso entre as autoridades brasileiras sobre como reforçar os alertas para o risco de tomar remédios e dirigir, pesquisas internacionais endossam a problemática e a necessidade de providências.
Duas análises – publicadas no ano passado no PubliMed, uma das referências em pesquisas em saúde – reuniram dados sobre acidentes de trânsito catalogados em todos ensaios científicos feitos entre 1966 e 2010.
Elas mostraram que os medicamentos benzodiazepínicos (calmantes) aumentam em 80% o risco de colisões graves. Os achados alertaram os especialistas que fazem parte do Instituto Internacional de Segurança no Trânsito. O mesmo ensaio mostrou que quando as drogas são misturadas ao álcool, o risco de batidas e atropelamentos é 7,7 vezes maior do que o implicado para motoristas sóbrios.
Não é apenas este grupo de remédios tranquilizantes que oferece risco à direção segura, complementa o diretor do Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim), Rogério Hoefler, entidade ligada ao Conselho Federal de Farmácia (CFF).
“Antidepressivos (ex.: fluoxetina, amitriptilina), ansiolíticos e sedativos (ex.: diazepam, lorazepam), antialérgicos, anti-histamínicos (ex.: dexclorfeniramina) e anticonvulsivantes (ex.: carbamazepina, fenobarbital) também podem oferecer risco aos usuários que dirigem”, elenca Hoefler.
“Usuários de medicamentos que reduzem os níveis de glicose no sangue (ex.: glibenclamida, gliclazida) podem ter episódios de hipoglicemia, o que também altera o nível de consciência e pode oferecer risco de acidente automobilístico”, completa o especialista.
Para agravar o cenário, atualmente 1,07 milhões dos motoristas habilitados no País têm mais de 50 anos – mostra levantamento do Denatran – faixa-etária em que o consumo de medicamentos é mais recorrente do que em idades mais jovens.
O toxicologista Tarso Bortolini é taxativo: em países onde há tradição em apurar os riscos dos medicamentos para os motoristas, como Bélgica, Holanda, Noruega e Espanha, esta decisão foi tomada após a constatação de que as legislações mais severas para motoristas alcoolizados não surtiram o efeito esperado.
 “Mesmo apertando a fiscalização e aumentando as penas para os flagrados que misturaram álcool e direção, as estatísticas de acidentes de trânsito não reduziram. As autoridades passaram então a investigar a associação das colisões com o uso de drogas lícitas e ilícitas e encontraram relação muito forte”, diz Bortolini.
No Brasil, ainda que os testes em laboratório para identificar a influência dos medicamentos na direção de risco não seja uma prática comum (e nem possível já que não há tecnologia suficiente, diz Bortolini), o fato é que a Lei Seca não conseguiu reverter a ascensão de danos no tráfego.
A legislação que determinou tolerância zero para a presença de álcool no sangue dos motoristas – e que disseminou por todos os Estados as blitze de policiais com bafômetros em punho – foi implementada em 2009.
Ainda assim, o ano de 2011 fechou com 170.596 internações em hospitais públicos e privados por conta de acidentes no trânsito. O número, resultante do levantamento do iG no banco de dados do Ministério da Saúde (DATASUS), é 6,7% maior do que os 159.854 registros de 2010. Comparando com 2009, a ampliação foi ainda mais acentuada, de 27,3%, quando foram 133.981 internações por acidentes.

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