Cigarro
e álcool matam três mil em dez anos
|
Diário
Web 12/02/2012 - Allan de Abreu
A cada ano, 300 pessoas morrem na região de Rio Preto devido ao uso de drogas, lícitas e ilícitas. De 2001 a 2010, foram 3 mil óbitos no Noroeste paulista causados pelo uso contínuo do cigarro, álcool, cocaína ou outras substâncias psicoativas. É como se uma cidade como Floreal ou Rubinéia fosse varridas do mapa em uma década.
Os números são do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do
Ministério da Saúde. O cigarro e a bebida, principais drogas legalizadas no
País, são responsáveis pela grande maioria dos óbitos. O fumo vem em primeiro
lugar, com 1.998 no total, seguido pelo álcool (964 mortes). Substâncias
psicoativas, como a morfina, mataram 20 pessoas, e a cocaína, três.
As mortes ocorrem preferencialmente entre os homens 2.238, contra 747
mulheres e na faixa etária entre 60 e 79 anos (1.411 mortes, quase a metade
do total). “São pessoas cujo organismo foi exposto por vários anos ao cigarro
ou ao álcool, drogas de fácil acesso e que corroem o organismo lentamente”,
afirma o pneumologista Ricardo Meirelles, da divisão de controle de tabagismo
do Instituto Nacional do Câncer (Inca).
A maioria dos óbitos, 722, são de rio-pretenses, como Mauro Pereira.
Ele morreu aos 74 anos em 18 de maio de 2008, após lutar nove meses contra um
câncer no pulmão. Começou a fumar na adolescência, e só parou semanas antes
da morte. Tragava dois maços de cigarro por dia, até que começou a tossir
continuamente. “Achamos que era sinusite, mas o Hospital de Base diagnosticou
câncer. Foi um susto para ele, mas já era tarde”, diz a viúva, Maria
Gertrudes.
Mauro se apegou a tudo o que podia para esticar a vida. Fez
quimioterapia e radioterapia. Mas aos poucos o câncer tomou conta do corpo.
“Ele reclamava muito de dor. Tomava morfina de quatro em quatro horas”,
lembra Maria, que tem um filho fumante. “Não adianta brigar.
Cada um sabe o
que é melhor para si.” Para algumas famílias, as drogas soam como ameaça
constante. Aos dez anos de idade T.A.F.Z., 18 anos, perdeu a mãe, vítima de
cirrose causada pela bebida. Como nunca chegou a conhecer o pai, passou a
morar na rua e começou a cheirar solvente e a fumar maconha. Até que foi
localizado pelo Conselho Tutelar e encaminhado à ONG Só por Hoje. Foram oito meses de
tratamento e mais três anos na casa-abrigo da entidade. Aos 16, mudou-se para
a casa da irmã, mas a convivência durou um ano apenas. T. acabou expulso de
casa e recaiu nas drogas, dessa vez na cocaína.
“Cheirava muito, todo dia, e passei a vender para sustentar o vício.”
Há um ano, foi a uma festa com 50 gramas de cocaína no bolso. “Eu queria
mostrar que tinha droga e sabia usar. Fazia ‘tiro’ (carreira do pó) longo e
cheirava tudo.” De repente, o rapaz começou a sentir o coração muito
acelerado. “Fiquei muito agitado, agachava toda hora, e a língua começou a
enrolar.” T. passou a se debater na calçada, olhos virados e boca aberta, até
que um morador de rua que passava pelo local conseguiu desenrolar sua língua.
Socorrido pelo Samu, acabou no Pronto-Socorro (PS) Central. “Quando
acordei, me falaram que não morri por sorte. Mas nem liguei. No mesmo dia,
voltei a cheirar.”
O vício
só foi interrompido há três meses, quando procurou novamente a Só por Hoje
para um novo tratamento. Desde então, se orgulha de estar “limpo”. “Não quero
mais ser escravo de droga nenhuma. Minha vida é sofrida, mas é muito melhor
do que a morte.”
Overdose de cocaína matou Michele aos 23
Há tempos Michele de Campos Bortoloci vinha cabisbaixa. Mas naquele 28
de fevereiro de 2011 parecia ainda mais triste. No início da noite, ela
trancou toda a casa no Jardim Anieli, zona oeste de Rio Preto, deixou na sala
as duas filhas, uma de 3 anos e outra de 8 meses, e se trancou no quarto.
Algumas horas depois a mãe de Michele, Iraci, decidiu visitar as netas
e deu com a casa fechada. Ouviu o choro das crianças e pediu ajuda aos
vizinhos para arrombar a porta da sala e do quarto. Encontrou as netas
assustadas e
Michele estirada na cama ao lado de seis papelotes de cocaína.
Acionado, o Samu ainda tentou reanimar a moça, sem sucesso. A jovem morria de
overdose aos 23 anos.
Filha de pais separados, Michele conheceu as drogas ainda na
adolescência, com 15 anos, por influência do seu primeiro namorado, viciado e
traficante, segundo o pai dela, o pedreiro Valdecir Bortoloci, 52 anos. “Ela
usava maconha e cocaína, e com o tempo passou a vender também. Quando vinha
me visitar, eu falava para ela sair dessa vida, mas ela não aceitava, brigava
comigo, e depois ficava uns seis meses sem me ver”, diz.
Michele ficou muito abalada quando um dos seus irmãos morreu, em junho
de 2010, vítima da diabetes. “Eles eram muito ligados, muito amigos. Depois
disso, a Michele só chorava e dizia que ele a chamava”, disse ao Diário a
irmã Tatiane no dia do velório de Michelle. Na segunda semana de fevereiro,
novo baque para a jovem, com a separação do segundo namorado, Wellington José
Barbosa. “Acho que foi aí que ela se entregou de vez para as drogas”, afirma
o pai.
Valdecir tem outros quatro filhos. Como Michele, dois são usuários de
drogas, e um está preso por tráfico. “Minha família, infelizmente, virou uma
anarquia por causa da droga.” De tempos em tempos, o pedreiro deixa o serviço
de lado para visitar o túmulo da filha, no cemitério São João Batista. “Vou
carregar esse sofrimento para o resto da vida.”
Tabapuã
Em setembro do ano passado, nova morte por suspeita de overdose na
região, desta vez em Tabapuã. Na noite do dia 22, familiares encontraram o
agente comunitário de saúde Tarciso Ascêncio, 28 anos, em crise de convulsão
na cama. O rapaz foi encaminhado para o hospital Maria do Vale Pereira, mas
chegou morto ao local. De acordo com funcionários do hospital, o jovem já foi
usuário de drogas, mas havia deixado o vício. Procurada na última semana, a
mãe de Tarciso não quis comentar o caso. As duas mortes ainda não constam do
banco de dados do Ministério da Saúde, que abrange até 2010.
Mistura
com álcool é letal
A cocaína mata de muitas maneiras. Aspirada pelo nariz ou injetada
diretamente na veia, acelera o coração e provoca, com o uso contínuo,
arritmia. Se consumida em excesso ou na forma mais pura, com pouca adição de
outras substâncias como lidocaína, aumenta o risco de parada cardíaca no
usuário. Há também doenças psíquicas como psicose e tendências suicidas.
Associada ao consumo de álcool, o risco de morte aumenta ainda mais,
segundo o toxicologista da USP Anthony Wong. “Usadas em conjunto, o fígado
transforma as duas drogas em cocaetilene, uma substância que tem duração
maior no cérebro e é 17 vezes mais potente do que a cocaína sozinha. Os
riscos ao corpo também aumentam substancialmente”, diz.
O
crack, segundo Wong, é composto por 80% de cocaína, e seu efeito é ainda mais
devastador. “Como é inalado, toda a superfície do pulmão fica exposta a uma
carga grande da droga. Por isso o uso contínuo provoca hipertensão e falência
cardíaca, além de pneumonia e tuberculose”, afirma o especialista.
Sozinho, fumo causou quase 2 mil mortes
O fumo responde por dois terços das 2.987 mortes por drogas
registradas na região de Rio Preto na última década: 1.998 óbitos. Para o
Instituto Nacional do Câncer (Inca), essa predominância se deve à facilidade
de se obter o cigarro, uma droga legalizada, e aos efeitos nocivos que ele
gera à saúde. São 4 mil substâncias no total, 60 delas cancerígenas.
“O
cigarro é uma potente ferramenta suicida devido ao seu alto grau de
dependência, maior até do que o crack. Por isso é o maior problema de saúde pública do
mundo”, afirma o pneumologista Ricardo Meirelles, da divisão de controle de
tabagismo do Inca. Segundo o instituto, existem 25 milhões de fumantes no
Brasil atualmente, todos com grande probabilidade de desenvolver algum tipo
de câncer após 20 anos de uso da nicotina. O de pulmão, mais comum deles, é
provocado pelo cigarro em 90% dos casos, e a maior causa de morte entre os
homens - nas mulheres, só perde para o câncer de mama.
Do total de mortes pelo cigarro na década no Noroeste paulista, 98,4%
(1.966) foram ocasionadas pelo câncer de pulmão. A enfermeira Leila Letícia
Gomes dos Santos, 24 anos, perdeu o pai em outubro do ano passado, vítima de
um tumor pulmonar. O comerciante Odilson Marcos Frizão Antonio começou a
fumar aos 16 anos. Eram dois maços diários, na média.
No início do ano passado, começaram os primeiros sintomas de confusão
mental em Odilson - resultado da falta de oxigenação nos pulmões e, por
consequência, no cérebro. “Ele sumiu de casa três vezes. Em uma delas, foi
pedindo carona até Ibirá. Tivemos de trancá-lo em casa”, lembra a filha. Em
abril, os médicos do Hospital de Base diagnosticaram câncer no pulmão e deram
seis meses de vida para o comerciante.
Mesmo em estágio terminal da doença, Odilson não largou o cigarro.
“Ele foi morar com o meu irmão em Catanduva porque ele deixava meu pai
fumar.” O quadro de Odilson piorou quando pegou pneumonia. Foi internado no
hospital Padre Albino, entrou em coma e morreu aos 58 anos.
Álcool
O álcool vem em segundo lugar no ranking das drogas mais mortais na
região, com 964 mortes. Desses óbitos, 611 foram consequência direta da
cirrose, doença sem cura do fígado. Segundo o hematologista do HB Willian
Duca, o consumo diário de 40 gramas de álcool entre os homens e de 20 gramas
entre as mulheres durante dez anos leva à cirrose hepática. O órgão mais
lesionado pelo álcool é o fígado, “a grande usina do organismo, que fraciona
os nutrientes dos alimentos para que sejam utilizados pelas células”, explica
Duca.
O primeiro efeito do álcool no fígado é o acúmulo de gordura. Em
seguida vem a esteatose, com os primeiros sintomas: náusea e olhos
amarelados. O último e derradeiro estágio é a cirrose, quando o fígado está
irreversivelmente comprometido: a barriga cresce, os olhos ficam amarelados,
os cabelos começam a cair e surge a impotência sexual. “Quando vem a cirrose,
a única solução é o transplante”, diz o especialista.
O comerciante Ermelino Alves da Rocha, 52 anos, tinha um hábito
sagrado: misturar cerveja com vodca todo fim de tarde, depois do expediente.
Até que, em 1999, descobriu ser portador do vírus da hepatite C. Iniciou
tratamento, mas não largou a bebida - “só abri mão da vodca”. Há um ano e
meio, surgiram os primeiros sinais da cirrose, com a retenção de líquido no
abdômen, pele amarelada, inchaço. Só aí Ermelino abandonou o vício.
“No
começo foi difícil. Ia em festas, e quando via um copo com cerveja vinha a
vontade. Mas agora fico só no suco de laranja mesmo.” Desde o fim de janeiro,
o comerciante passa por uma bateria de testes no HB. É candidato a ingressar
na fila de transplantes do hospital. “Não tenho medo da morte, mas viver é
bom demais.”
No País, 40,7 mil óbitos
No intervalo de cinco anos, entre 2006 e 2010, o uso de drogas matou
40.692 pessoas no País, uma média de 8 mil óbitos por ano, segundo o Sistema
de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, compilado em
estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Ao contrário da região de
Rio Preto, o álcool é o campeão da mortandade no País, com 34.573 óbitos, e
no Estado de São Paulo, com 4.625 mortes. “Aparentemente não há explicação
para a predominância das mortes por fumo na região, ao contrário do País e do
Estado. Isso mereceria um estudo mais aprofundado”, diz o pneumologista Nadir
Jorge Racy.
Para o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, o estudo revela que há uma
urgente necessidade de combater o problema das drogas nos municípios. “E não
se está fazendo isso. O problema estoura é nos municípios”, afirma. Para ele,
“o País precisa ver que a política de prevenção do uso de drogas é precária”.
O SIM, base de dados do estudo da entidade, é uma ferramenta do Datasus para
coleta de dados sobre óbitos no País. Os médicos que atestam as mortes devem
preencher um formulário que é enviado ao Ministério da Saúde de acordo com a
Classificação Internacional de Doenças (CID).
Rede
pública tem ação antitabagismo
O serviço de tratamento antitabagismo mantido pela Secretaria de Saúde
de Rio Preto atendeu 370 fumantes desde sua criação, em outubro de 2009, na
Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro Santo Antonio, zona norte. Mas apenas
36 abandonaram de vez o cigarro. O diretor de atenção básica da pasta, Luiz
Fernando Gonçalves Borges, credita o baixo número à dificuldade de largar o
vício no tabaco. “O programa exige disciplina e planejamento, que nem todos
têm”, diz.
Atualmente, o programa funciona nas UBSs do Santo Antonio, às
quintas-feiras, e do Solo Sagrado, às quartas. Na primeira entrevista, feita
por uma psicóloga, é levantado o histórico do fumante, incluindo o início do
vício e a quantidade de cigarros que fuma por dia. Também é aplicado um teste
para averiguar o grau de dependência do indivíduo e se ele possui doenças
pré-existentes.
Em seguida, o paciente é encaminhado a uma consulta médica com um
clínico geral, que solicita exames para avaliação da saúde física. O próximo
passo é a terapia, que no primeiro mês é semanal, quinzenal no segundo e
mensal a partir do terceiro, até completar um ano. Para os dependentes
químicos, o tratamento é oferecido no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool
e Drogas (Caps-AD). Em três anos, foram 9.965 atendimentos, 7.868 para homens
e 1997 para mulheres. A coordenadoria do Caps-AD estima que 40% desse total (3.946)
seja pelo vício em álcool, seguido de perto pelos dependentes da cocaína, com
38% (3.749)
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário