terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cigarro e álcool matam muito mais que as drogas ilícitas.


Cigarro e álcool matam três mil em dez anos



Diário Web 12/02/2012 - Allan de Abreu

A cada ano, 300 pessoas morrem na região de Rio Preto devido ao uso de drogas, lícitas e ilícitas. De 2001 a 2010, foram 3 mil óbitos no Noroeste paulista causados pelo uso contínuo do cigarro, álcool, cocaína ou outras substâncias psicoativas. É como se uma cidade como Floreal ou Rubinéia fosse varridas do mapa em uma década.
Os números são do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. O cigarro e a bebida, principais drogas legalizadas no País, são responsáveis pela grande maioria dos óbitos. O fumo vem em primeiro lugar, com 1.998 no total, seguido pelo álcool (964 mortes). Substâncias psicoativas, como a morfina, mataram 20 pessoas, e a cocaína, três.
As mortes ocorrem preferencialmente entre os homens 2.238, contra 747 mulheres e na faixa etária entre 60 e 79 anos (1.411 mortes, quase a metade do total). “São pessoas cujo organismo foi exposto por vários anos ao cigarro ou ao álcool, drogas de fácil acesso e que corroem o organismo lentamente”, afirma o pneumologista Ricardo Meirelles, da divisão de controle de tabagismo do Instituto Nacional do Câncer (Inca).


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A maioria dos óbitos, 722, são de rio-pretenses, como Mauro Pereira. Ele morreu aos 74 anos em 18 de maio de 2008, após lutar nove meses contra um câncer no pulmão. Começou a fumar na adolescência, e só parou semanas antes da morte. Tragava dois maços de cigarro por dia, até que começou a tossir continuamente. “Achamos que era sinusite, mas o Hospital de Base diagnosticou câncer. Foi um susto para ele, mas já era tarde”, diz a viúva, Maria Gertrudes.
Mauro se apegou a tudo o que podia para esticar a vida. Fez quimioterapia e radioterapia. Mas aos poucos o câncer tomou conta do corpo. “Ele reclamava muito de dor. Tomava morfina de quatro em quatro horas”, lembra Maria, que tem um filho fumante. “Não adianta brigar. 
Cada um sabe o que é melhor para si.” Para algumas famílias, as drogas soam como ameaça constante. Aos dez anos de idade T.A.F.Z., 18 anos, perdeu a mãe, vítima de cirrose causada pela bebida. Como nunca chegou a conhecer o pai, passou a morar na rua e começou a cheirar solvente e a fumar maconha. Até que foi localizado pelo Conselho Tutelar e encaminhado à ONG Só por Hoje. Foram oito meses de tratamento e mais três anos na casa-abrigo da entidade. Aos 16, mudou-se para a casa da irmã, mas a convivência durou um ano apenas. T. acabou expulso de casa e recaiu nas drogas, dessa vez na cocaína.
“Cheirava muito, todo dia, e passei a vender para sustentar o vício.” Há um ano, foi a uma festa com 50 gramas de cocaína no bolso. “Eu queria mostrar que tinha droga e sabia usar. Fazia ‘tiro’ (carreira do pó) longo e cheirava tudo.” De repente, o rapaz começou a sentir o coração muito acelerado. “Fiquei muito agitado, agachava toda hora, e a língua começou a enrolar.” T. passou a se debater na calçada, olhos virados e boca aberta, até que um morador de rua que passava pelo local conseguiu desenrolar sua língua.
Socorrido pelo Samu, acabou no Pronto-Socorro (PS) Central. “Quando acordei, me falaram que não morri por sorte. Mas nem liguei. No mesmo dia, voltei a cheirar.”
O vício só foi interrompido há três meses, quando procurou novamente a Só por Hoje para um novo tratamento. Desde então, se orgulha de estar “limpo”. “Não quero mais ser escravo de droga nenhuma. Minha vida é sofrida, mas é muito melhor do que a morte.”


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Overdose de cocaína matou Michele aos 23
Há tempos Michele de Campos Bortoloci vinha cabisbaixa. Mas naquele 28 de fevereiro de 2011 parecia ainda mais triste. No início da noite, ela trancou toda a casa no Jardim Anieli, zona oeste de Rio Preto, deixou na sala as duas filhas, uma de 3 anos e outra de 8 meses, e se trancou no quarto.
Algumas horas depois a mãe de Michele, Iraci, decidiu visitar as netas e deu com a casa fechada. Ouviu o choro das crianças e pediu ajuda aos vizinhos para arrombar a porta da sala e do quarto. Encontrou as netas assustadas e
Michele estirada na cama ao lado de seis papelotes de cocaína. Acionado, o Samu ainda tentou reanimar a moça, sem sucesso. A jovem morria de overdose aos 23 anos.
Filha de pais separados, Michele conheceu as drogas ainda na adolescência, com 15 anos, por influência do seu primeiro namorado, viciado e traficante, segundo o pai dela, o pedreiro Valdecir Bortoloci, 52 anos. “Ela usava maconha e cocaína, e com o tempo passou a vender também. Quando vinha me visitar, eu falava para ela sair dessa vida, mas ela não aceitava, brigava comigo, e depois ficava uns seis meses sem me ver”, diz.
Michele ficou muito abalada quando um dos seus irmãos morreu, em junho de 2010, vítima da diabetes. “Eles eram muito ligados, muito amigos. Depois disso, a Michele só chorava e dizia que ele a chamava”, disse ao Diário a irmã Tatiane no dia do velório de Michelle. Na segunda semana de fevereiro, novo baque para a jovem, com a separação do segundo namorado, Wellington José Barbosa. “Acho que foi aí que ela se entregou de vez para as drogas”, afirma o pai.
Valdecir tem outros quatro filhos. Como Michele, dois são usuários de drogas, e um está preso por tráfico. “Minha família, infelizmente, virou uma anarquia por causa da droga.” De tempos em tempos, o pedreiro deixa o serviço de lado para visitar o túmulo da filha, no cemitério São João Batista. “Vou carregar esse sofrimento para o resto da vida.”
Tabapuã
Em setembro do ano passado, nova morte por suspeita de overdose na região, desta vez em Tabapuã. Na noite do dia 22, familiares encontraram o agente comunitário de saúde Tarciso Ascêncio, 28 anos, em crise de convulsão na cama. O rapaz foi encaminhado para o hospital Maria do Vale Pereira, mas chegou morto ao local. De acordo com funcionários do hospital, o jovem já foi usuário de drogas, mas havia deixado o vício. Procurada na última semana, a mãe de Tarciso não quis comentar o caso. As duas mortes ainda não constam do banco de dados do Ministério da Saúde, que abrange até 2010.
Mistura com álcool é letal
A cocaína mata de muitas maneiras. Aspirada pelo nariz ou injetada diretamente na veia, acelera o coração e provoca, com o uso contínuo, arritmia. Se consumida em excesso ou na forma mais pura, com pouca adição de outras substâncias como lidocaína, aumenta o risco de parada cardíaca no usuário. Há também doenças psíquicas como psicose e tendências suicidas.
Associada ao consumo de álcool, o risco de morte aumenta ainda mais, segundo o toxicologista da USP Anthony Wong. “Usadas em conjunto, o fígado transforma as duas drogas em cocaetilene, uma substância que tem duração maior no cérebro e é 17 vezes mais potente do que a cocaína sozinha. Os riscos ao corpo também aumentam substancialmente”, diz.
O crack, segundo Wong, é composto por 80% de cocaína, e seu efeito é ainda mais devastador. “Como é inalado, toda a superfície do pulmão fica exposta a uma carga grande da droga. Por isso o uso contínuo provoca hipertensão e falência cardíaca, além de pneumonia e tuberculose”, afirma o especialista.

Sozinho, fumo causou quase 2 mil mortes
O fumo responde por dois terços das 2.987 mortes por drogas registradas na região de Rio Preto na última década: 1.998 óbitos. Para o Instituto Nacional do Câncer (Inca), essa predominância se deve à facilidade de se obter o cigarro, uma droga legalizada, e aos efeitos nocivos que ele gera à saúde. São 4 mil substâncias no total, 60 delas cancerígenas.
“O cigarro é uma potente ferramenta suicida devido ao seu alto grau de dependência, maior até do que o crack. Por isso é o maior problema de saúde pública do mundo”, afirma o pneumologista Ricardo Meirelles, da divisão de controle de tabagismo do Inca. Segundo o instituto, existem 25 milhões de fumantes no Brasil atualmente, todos com grande probabilidade de desenvolver algum tipo de câncer após 20 anos de uso da nicotina. O de pulmão, mais comum deles, é provocado pelo cigarro em 90% dos casos, e a maior causa de morte entre os homens - nas mulheres, só perde para o câncer de mama.
Do total de mortes pelo cigarro na década no Noroeste paulista, 98,4% (1.966) foram ocasionadas pelo câncer de pulmão. A enfermeira Leila Letícia Gomes dos Santos, 24 anos, perdeu o pai em outubro do ano passado, vítima de um tumor pulmonar. O comerciante Odilson Marcos Frizão Antonio começou a fumar aos 16 anos. Eram dois maços diários, na média.
No início do ano passado, começaram os primeiros sintomas de confusão mental em Odilson - resultado da falta de oxigenação nos pulmões e, por consequência, no cérebro. “Ele sumiu de casa três vezes. Em uma delas, foi pedindo carona até Ibirá. Tivemos de trancá-lo em casa”, lembra a filha. Em abril, os médicos do Hospital de Base diagnosticaram câncer no pulmão e deram seis meses de vida para o comerciante.
Mesmo em estágio terminal da doença, Odilson não largou o cigarro. “Ele foi morar com o meu irmão em Catanduva porque ele deixava meu pai fumar.” O quadro de Odilson piorou quando pegou pneumonia. Foi internado no hospital Padre Albino, entrou em coma e morreu aos 58 anos.
Álcool
O álcool vem em segundo lugar no ranking das drogas mais mortais na região, com 964 mortes. Desses óbitos, 611 foram consequência direta da cirrose, doença sem cura do fígado. Segundo o hematologista do HB Willian Duca, o consumo diário de 40 gramas de álcool entre os homens e de 20 gramas entre as mulheres durante dez anos leva à cirrose hepática. O órgão mais lesionado pelo álcool é o fígado, “a grande usina do organismo, que fraciona os nutrientes dos alimentos para que sejam utilizados pelas células”, explica Duca.
O primeiro efeito do álcool no fígado é o acúmulo de gordura. Em seguida vem a esteatose, com os primeiros sintomas: náusea e olhos amarelados. O último e derradeiro estágio é a cirrose, quando o fígado está irreversivelmente comprometido: a barriga cresce, os olhos ficam amarelados, os cabelos começam a cair e surge a impotência sexual. “Quando vem a cirrose, a única solução é o transplante”, diz o especialista.
O comerciante Ermelino Alves da Rocha, 52 anos, tinha um hábito sagrado: misturar cerveja com vodca todo fim de tarde, depois do expediente. Até que, em 1999, descobriu ser portador do vírus da hepatite C. Iniciou tratamento, mas não largou a bebida - “só abri mão da vodca”. Há um ano e meio, surgiram os primeiros sinais da cirrose, com a retenção de líquido no abdômen, pele amarelada, inchaço. Só aí Ermelino abandonou o vício.
“No começo foi difícil. Ia em festas, e quando via um copo com cerveja vinha a vontade. Mas agora fico só no suco de laranja mesmo.” Desde o fim de janeiro, o comerciante passa por uma bateria de testes no HB. É candidato a ingressar na fila de transplantes do hospital. “Não tenho medo da morte, mas viver é bom demais.”

No País, 40,7 mil óbitos
No intervalo de cinco anos, entre 2006 e 2010, o uso de drogas matou 40.692 pessoas no País, uma média de 8 mil óbitos por ano, segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, compilado em estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Ao contrário da região de Rio Preto, o álcool é o campeão da mortandade no País, com 34.573 óbitos, e no Estado de São Paulo, com 4.625 mortes. “Aparentemente não há explicação para a predominância das mortes por fumo na região, ao contrário do País e do Estado. Isso mereceria um estudo mais aprofundado”, diz o pneumologista Nadir Jorge Racy.
Para o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, o estudo revela que há uma urgente necessidade de combater o problema das drogas nos municípios. “E não se está fazendo isso. O problema estoura é nos municípios”, afirma. Para ele, “o País precisa ver que a política de prevenção do uso de drogas é precária”. O SIM, base de dados do estudo da entidade, é uma ferramenta do Datasus para coleta de dados sobre óbitos no País. Os médicos que atestam as mortes devem preencher um formulário que é enviado ao Ministério da Saúde de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID).
Rede pública tem ação antitabagismo
O serviço de tratamento antitabagismo mantido pela Secretaria de Saúde de Rio Preto atendeu 370 fumantes desde sua criação, em outubro de 2009, na Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro Santo Antonio, zona norte. Mas apenas 36 abandonaram de vez o cigarro. O diretor de atenção básica da pasta, Luiz Fernando Gonçalves Borges, credita o baixo número à dificuldade de largar o vício no tabaco. “O programa exige disciplina e planejamento, que nem todos têm”, diz.
Atualmente, o programa funciona nas UBSs do Santo Antonio, às quintas-feiras, e do Solo Sagrado, às quartas. Na primeira entrevista, feita por uma psicóloga, é levantado o histórico do fumante, incluindo o início do vício e a quantidade de cigarros que fuma por dia. Também é aplicado um teste para averiguar o grau de dependência do indivíduo e se ele possui doenças pré-existentes.
Em seguida, o paciente é encaminhado a uma consulta médica com um clínico geral, que solicita exames para avaliação da saúde física. O próximo passo é a terapia, que no primeiro mês é semanal, quinzenal no segundo e mensal a partir do terceiro, até completar um ano. Para os dependentes químicos, o tratamento é oferecido no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (Caps-AD). Em três anos, foram 9.965 atendimentos, 7.868 para homens e 1997 para mulheres. A coordenadoria do Caps-AD estima que 40% desse total (3.946) seja pelo vício em álcool, seguido de perto pelos dependentes da cocaína, com 38% (3.749)

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