A CRISE DE ABSTINÊNCIA DE
NICOTINA
Drauzio Varella
Tinha até esquecido o quanto sofre o
fumante para largar do cigarro. Parei há 23 anos e já não me lembrava das agruras
pelas quais passei até ficar livre da dependência de nicotina que me escravizou
durante 19 anos. Ao gravar uma série para a TV com seis personagens que pararam
de fumar num mesmo dia, no entanto, revivi meu sofrimento e pude observar as
dificuldades dos dependentes diante da crise de abstinência de nicotina.
O cigarro nada mais é
do que um dispositivo para administrar droga. A nicotina inalada com a fumaça é
rapidamente absorvida pelos alvéolos pulmonares, cai na circulação e chega ao
cérebro num intervalo de seis a dez segundos. Inalada, chega mais depressa do
que se tivesse sido injetada na veia, porque não perde tempo na circulação
venosa. A velocidade com que a droga chega ao sistema nervoso central explica
por que a primeira tragada traz alívio imediato ao fumante aflito.
No tecido cerebral, a
nicotina se liga a receptores localizados nas membranas dos neurônios
localizados em vários centros cerebrais. A integração desses circuitos é
responsável pela sensação de prazer que os dependentes referem sentir ao fumar
– e que os não-fumantes são incapazes de entender.
A droga é de excreção
rápida. Sua meia-vida é curta: duas horas, em média. Isto é, metade da dose
fumada é eliminada da circulação em duas horas. Por razões genéticas, essa
velocidade de excreção varia de um fumante para outro; os que eliminam a droga
mais depressa tendem a fumar mais. Grande parte dos que fumam dois ou três
maços por dia é constituída por metabolizadores rápidos de nicotina.
A presença de outras
drogas na circulação pode alterar a velocidade de excreção. É o caso do álcool,
substância na qual a nicotina se dissolve com muita facilidade. Como o álcool é
diurético, ao beber, o fumante excreta rapidamente na urina a nicotina nele
dissolvida. A queda da concentração da droga no sangue desencadeia o desejo
irresistível de fumar.
Viciados em nicotina,
os neurônios do centro que integra as sensações de prazer, ao sentirem seus
receptores vazios dela, estimulam outros circuitos de neurônios, que convergem
para o chamado centro da busca. Esse centro é responsável por induzir
alterações comportamentais com a intenção de nos obrigar a repetir ações que
anteriormente nos trouxeram prazer: sexo, comida, temperatura agradável para o
corpo, etc.
Uma vez que os centros
do prazer ativam o centro da busca, este não pode ser mais desativado. O centro
da busca permanecerá ativado mesmo que o prazer responsável por sua ativação
deixe de existir. Por isso o fumante se surpreende ao acender um cigarro no
toco do outro, o usuário de cocaína continua cheirando apesar do delírio
persecutório que experimenta toda vez que usa a droga, e o jogador compulsivo é
capaz de perder a casa da família em cima do pano verde.
Informados da falta de
nicotina, os neurônios do centro da busca lançam mão de sua mais poderosa arma
de persuasão comportamental: a ansiedade crescente. Tomado pela vontade de
fumar, o fumante perde a tranqüilidade, fica agitado, nervoso e não consegue se
concentrar em mais nada. Para ele, não existe felicidade possível sem o
cigarro.
Como a nicotina é
droga de excreção rápida, essas crises de ansiedade se repetem muitas vezes por
dia. Para evitá-las, o fumante vive com o maço ao alcance da mão para acender
um cigarro assim que surgirem os primeiros sinais, porque sabe que a
intensidade dos sintomas da crise é crescente, insuportável.
O cérebro aprende, então, que ansiedade e nicotina estão indissoluvelmente ligadas. Daí em diante, todo acontecimento que provocar ansiedade será interpretado por ele como resultante da ausência de nicotina. Por isso os fumantes levam imediatamente um cigarro à boca ao menor sinal de ansiedade ou diante da emoção mais rotineira. Por isso dizem que o cigarro os acalma.
O cérebro aprende, então, que ansiedade e nicotina estão indissoluvelmente ligadas. Daí em diante, todo acontecimento que provocar ansiedade será interpretado por ele como resultante da ausência de nicotina. Por isso os fumantes levam imediatamente um cigarro à boca ao menor sinal de ansiedade ou diante da emoção mais rotineira. Por isso dizem que o cigarro os acalma.
O curto-circuito de
prazer que a nicotina arma entre os neurônios provoca uma dependência química
de forte intensidade, enfermidade cerebral crônica e recidivante. Para
tratá-la, é preciso ensinar o cérebro novamente a funcionar como fazia antes de
entrar em contato com a droga. Tal empreitada significa enfrentar a abstinência
de nicotina, que se manifesta em crises repetitivas, muito mais intensas,
desagradáveis e difíceis de suportar do que aquelas provocadas por drogas como
cocaína, crack, maconha, ou álcool.
Os primeiros dois dias
sem fumar são os piores. As crises se sucedem uma atrás da outra até atingirem
freqüência e duração máximas em 48 horas. Nesse período, as manifestações
incluem irritação, ansiedade, tremores, sudorese fria nas mãos, fome
compulsiva, modificação do hábito intestinal, alterações da arquitetura do sono
(insônia ou hipersônia), dificuldade extrema de concentração e alternância de
episódios de apatia com outros de agressividade comportamental.
A partir do terceiro
dia, a frequência das crises e a intensidade dos sintomas começam a diminuir
gradativamente, dia após dia. À medida que as semanas se sucedem, o desejo de
fumar continua a manifestar-se, mas vai embora cada vez mais depressa.
Em média, seis meses
depois de parar de fumar, a maioria dos ex-fumantes já consegue passar um ou
outro dia sem se lembrar da existência do cigarro. Os neurônios começam a ficar
livres da dependência que os sucessivos impactos diários de nicotina causaram
em seus circuitos. É a liberdade do cérebro, que, para ser mantida, exige o
preço da eterna vigilância, porque a doença é traiçoeira, crônica e recidivante.
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