O e-commerce e o narcotráfico
Jornal Folha de S.
Paulo - MIKE POWER - DO "GUARDIAN"
Z. Klein/BBC Brasil
- Plantação de maconha da empresa Tikkun Olam, sediada em Israel
Muita gente deve ter
ficado alarmada, surpresa ou intrigada com a notícia, incluída na edição deste
ano da Pesquisa Global Sobre Drogas, de que o tráfico de entorpecentes pela
internet está em ascensão. Mas a primeira coisa vendida e comprada pela
internet foi um saquinho de maconha há mais de 40 anos.
Em um livro de 2005 chamado "What the Dormouse Said: How the Sixties
Counterculture Shaped the Personal Computer Industry" [O que disse o
arganaz: como a contracultura dos anos 60 moldou a indústria dos computadores
pessoais] --até o título é de uma velha faixa do Jefferson Airplane--, John
Markoff revela que a primeira transação on-line do mundo foi uma venda de
entorpecentes.
Em 1971 ou 72, alunos de Stanford usando contas da Arpanet no Laboratório
de Inteligência Artificial da Universidade Stanford participaram de uma
transação comercial com seus colegas do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT). Antes da Amazon, antes do eBay, o ato seminal do
e-commerce foi uma venda de entorpecentes. Os alunos usaram a rede para
discretamente combinar a venda de uma quantidade não determinada de maconha.
Desde então tem sido, como diria o Grateful Dead, uma viagem longa e
esquisita, e os usuários de drogas vêm se mantendo, com a ajuda da química, da
neurofarmacologia e das telecomunicações, vários passos à frente da lei.
Nas décadas de 1970, 80 e 90, drogas de todos os tipos, legais ou não, já
eram vendidas on-line. Em 2013, algumas pessoas se perguntam: por que violar as
leis se você pode simplesmente encomendar a um laboratório chinês que sintetize
uma maconha artificial (tecnicamente, um agonista dos receptores canabinoides)
que já demonstrou, em condições laboratoriais, ter alguns dos mesmos efeitos da
maconha? A lei tem tido dificuldades para acompanhar isso.
A pergunta também está sendo feita por negociantes inescrupulosos, que
alegremente importam e vendem esses compostos raros, não testados e de pureza
incerta, os dissolvem em acetona e os aspergem sobre um suporte vegetal inerte,
que eles vendem pela internet a qualquer um que tenha um cartão de crédito.
Eles têm pouca consideração pelos consumidores dessas drogas não testadas, que
nem sequer foram concebidas para serem drogas. Elas podem causar náuseas,
hipertensão e até danos renais.
No ano passado, pesquisadores descobriram 73 novas drogas no mercado,
vendidas por quase 700 sites na Europa. Mas o que são elas? A maioria das
pessoas com mais de 30 anos se lembra de quando o cardápio de drogas se
limitava a maconha, LSD, anfetaminas, cocaína e heroína. Hoje, a farmacopeia é
incrivelmente nova, e em muitos casos legal.
Basta examinar as leis antidrogas, me disse um químico clandestino, para
notar que é brincadeira de criança burlar as restrições e criar uma droga
legal, que seja quimicamente semelhante a uma substância vetada, mas que não
seja ela mesma proibida. Ainda mais fácil é examinar pesquisas médicas
publicadas em busca de qualquer coisa que indique atividade locomotora
ampliada, ou atividade dos receptores de serotonina ou dopamina, já que isso
provavelmente funcionará, de uma forma ou outra, como uma droga.
E se só tiver sido testado em ratos, quem se importa? Os jovens estão
fazendo fila para serem cobaias.
Dos 73 novos compostos químicos descobertos no ano passado, 50 eram
agonistas dos receptores canabinoides, frequentemente desenvolvidos para o uso
em pesquisas farmacêuticas legítimas, conhecidos como teste de "relação
estrutura-atividade". O sistema canabinoide endógeno tem profundos efeitos
sobre o humor, o apetite, a pressão arterial e muitas outras funções essenciais.
Empresas como a Stirling Winthrop e os laboratórios de John William
Huffman na Universidade Clemson, nos EUA, já produziram centenas dessas drogas
como parte das suas pesquisas legítimas sobre anti-inflamatórios não
esteroides. Mas elas escaparam para os mercados cinzentos em 2008, e um pânico
moral teve início --assegurando a difusão do seu uso.
O primeiro lote de leis proibindo novos agonistas dos receptores
canabinoides surgiu em 2010, quando a febre da mefedrona (também conhecida como
M-cat ou miau-miau) estava no auge. Cerca de 170 deles foram banidos em uma
legislação tecnicamente complexa, que proíbe famílias inteiras de compostos
químicos e que cerca seus substitutos. Mesmo a legislação mais recente, em
fevereiro, não impediu as inovações na verdade, as estimulou. Assim que uma
leva era proibida, dezenas de outras apareciam sendo vendidas, no mesmíssimo
dia.
Hoje, o número de novas drogas disponíveis está se acelerando em tal ritmo
que a polícia e os toxicologistas já não conseguem nem identificar o que são
elas, pois não há amostras de referência disponíveis com as quais compará-las.
E, em toda a internet, há milhões de operações de narcotráfico acontecendo.
Como disse William Gibson: "O futuro já está aí só não é distribuído
muito equitativamente".
Tradução de RODRIGO LEITE.
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