O GRANDE
INJUSTICEIRO
O câncer é tragicamente igualador e todos temos alguma
ligação com ele, diz oncologista-escritor
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo - 11 de
março de 2012
No filme Desconstruindo Harry, de 1997, o neurótico Harry Block, vivido por
Woody Allen, declara que "as palavras mais bonitas da língua inglesa não
são 'eu te amo', e sim 'é benigno'". Mas, no ano passado, 1 milhão e 600
mil americanos tiveram que se contentar apenas com o "I love you".
Em suas múltiplas encarnações como
hipocondríaco, Woody Allen poderia perder o ímpeto piadista num primeiro
encontro com o oncologista Siddhartha Mukherjee. O autor de O Imperador de
Todos os Males: Uma Biografia do Câncer (Companhia das Letras), vencedor do
Prêmio Pulitzer de 2011 na categoria não ficção, chega junto com a repórter ao
lobby do moderno edifício no Harlem. Não fosse pelo letreiro que anuncia o
Columbia Cancer Center, o visual do médico o remeteria a uma galeria de arte em
Chelsea. De botas pretas, blazer da Osklen ("só compro blazer dessa grife
brasileira") e cabelo cuidadosamente espigado, ele é puro cool. No
escritório, oferece um café de qualidade ("aqui há muito médico europeu, o
café é melhor") e se lança às respostas com o apetite e a clareza de quem
não acredita em escrita com perfil de consultório. "Escrever é
escrever", diz.
Best-seller nos Estados Unidos e traduzido em
sete línguas, o livro de estreia do indiano nascido em Nova Délhi há 41 anos
conta a história do mal que não é um, mas vários. O que a palavra câncer
descreve em comum é o crescimento anormal de células. Não existe uma cura
universal para o câncer, explica o autor, porque não existe o tumor
geneticamente universal.
A prosa de Mukherjee é elegante e sua crônica
de 4 mil anos plena de citações literárias, que incluem Aleksandr Soljenitsyn
(Pavilhão de Cancerosos), Susan Sontag (A Doença como Metáfora) e uma inédita
aplicação médica para a famosa abertura de Anna Karenina sobre famílias e infelicidade:
"As células normais são identicamente normais; as células malignas se
tornam infelizmente malignas de maneira única".
O câncer, lembra Mukherjee, é a mais antiga das
doenças. A ideia de que seja moderno faz sentido: é um mal da longevidade. Daí
sua explosão a partir do século 20, com o súbito aumento da expectativa de
vida. "O câncer é minha nova normalidade", diz uma paciente de
Mukherjee, com a qual ele concorda. À medida que a incidência de certos tipos
de câncer em alguns países já é de 1 para 2, ele encara a doença como
inevitável. Mas conta que escrever o livro tirou seu medo de encarar tal
destino.
O presidente venezuelano Hugo
Chávez faz segredo total sobre o tratamento de um câncer na região da
pélvis e, por esse motivo, seus boletins são em geral desacreditados. Já Luiz
Inácio Lula da Silva, nosso ex-presidente e figura determinante na política do
País, decidiu abrir o jogo sobre a evolução do câncer da laringe, descoberto em
outubro. Em que medida a superexposição prejudica ou ajuda o tratamento?
É importante compreender que as doenças afetam
a todos. São tragicamente igualadoras, você não está imune porque é presidente,
assim como não está imune porque mora na favela. E, de alguma forma, todo mundo
tem alguma ligação com o câncer. Então acho que a figura pública beneficia os
pacientes anônimos, aumenta a visibilidade da doença e afeta a maneira como se
levantam fundos para a pesquisa. Essa é uma consequência muito importante
porque boa parte do dinheiro é devotado à pesquisa, o que nos permite tratar de
futuras gerações de pacientes.
Em sua experiência no tratamento
de pessoas de países diferentes, notou distinções culturais importantes
na forma como os pacientes lidam com a doença? E quando eles têm
religiões diferentes?
Descobri que as diferenças culturais são menos
importantes que as diferenças interpessoais. A reação do ser humano ao câncer
ou a outra doença dessa magnitude é tão diferente de pessoa para pessoa que
supera o fator cultural, ainda que ele tenha peso. Nos Estados Unidos, certos
grupos têm uma suspeita grande quanto ao sistema de saúde - não sem razão. Os
afro-americanos, por exemplo, sempre estiveram em desvantagem, especialmente
nos casos de câncer. Entre dois pacientes com o mesmo status social, um
americano negro e um branco vão receber cuidados médicos diferentes, desde o
começo. Então a suspeita contra o establishment médico é justificada. Já quanto
à religião, encontrei algumas dificuldades. Um exemplo: testemunhas de Jeová
criam obstáculos para a químio em pacientes com leucemia, especialmente por
causa da transfusão de sangue. A situação se torna muito complicada porque você
quer respeitar as convicções dos outros, mas a necessidade de transfusão
costuma ser imediata. É muito difícil lidar com isso.
O senhor atribui as derrotas da 'guerra ao
câncer' declarada pelo presidente Richard Nixon em 1971 ao fato de que não
havia um conhecimento científico servindo de munição. Na conclusão do livro,
entre as novas armas, o senhor afirma que o projeto do genoma do câncer será
mais importante do que foi o
Projeto Genoma. Qual é o novo
caminho para a vitória contra o câncer?
Hoje entendemos a célula do câncer num nível
biológico e mecânico que não existia há dez anos. A diferença é enorme. Temos,
afinal, a capacidade de começar a resolver o problema da gênese da doença e
possivelmente do tratamento e da cura potencial de certos tipos de câncer.
Obviamente, esta não é uma doença só, mas várias.
O senhor está usando a expressão
'cura potencial'.
Sim, porque há muito que realizar. Mesmo o
projeto do genoma do câncer, que nos daria uma visão incrivelmente detalhada da
anatomia anormal da doença, ainda não atingiu seu potencial máximo. Sabemos
hoje o que são alguns dos genes do câncer, mas não sabemos o que fazem. É saber
da existência de algo, sem compreender o seu mecanismo. Mesmo quando
descobrirmos o que esses genes alterados vão fazer, ainda teremos que descobrir
uma estratégia de prevenção e tratamento com foco nos genes alterados. E isso
não será possível em todos os casos, só em alguns. Dito isso, já existe um
número crescente de exemplos em que o conhecimento dessa anatomia levou a
mecanismos de prevenção e tratamento. O caso do melanoma maligno metastático é
um bom exemplo. Se estivesse localizado, o único tratamento era a cirurgia. Se
tivesse se espalhado, não havia nenhuma droga aprovada em experiências
clínicas. Agora existem duas ou três que parecem fazer efeito. Usadas
individualmente, têm resultado modesto e o paciente desenvolve resistência a
elas em pouco tempo. Mas podemos combiná-las. O desenvolvimento dessas drogas
abre um universo de medicamentos novos. Para você ter uma ideia, quando eu era
fellow em Boston, há nove anos, era quase impossível encontrar um colega que
escolhesse o melanoma como especialidade. Hoje sei, como membro do comitê de
admissões, que um em cada quatro ou cinco candidatos escolhe esse campo. O
otimismo cresce graças a essas descobertas. Há um panorama em transformação.
Como o fator econômico afeta as
decisões sobre quais tipos de câncer recebem mais atenção nos EUA? E como as
instituições públicas ajudam a corrigir distorções?
As instituições públicas são fundamentais. Só a
pesquisa usada no meu livro mostra o papel importantíssimo do National
Institute of Cancer e do National Institute of Health. São eles que dão a
plataforma nacional para a pesquisa que é avaliada pelos colegas de profissão,
relativamente livre do interesse econômico. Mas nada é 100% imune à
contaminação. Mesmo nos anos 90 havia grande resistência por parte da indústria
farmacêutica em desenvolver drogas para o que então chamávamos de tipos raros
de câncer, como a leucemia mieloide crônica. Mesmo assim, um dos maiores
exemplos de sucesso na compreensão da genética do câncer foi o desenvolvimento
do Glivec (mesilato de imatinibe). Considero a chegada dessa droga um fato
histórico porque ela não apenas nos permitiu entender que, se você mira numa
célula cancerosa, pode obter resultados impressionantes, mas também mudou o
paradigma para a produção de drogas de maneira geral. Há drogas novas para
câncer de mama que estão para chegar ao mercado e são primas químicas do
Glivec. Então, se você estuda algo em profundidade, acaba se abrindo para um
universo mais amplo. Novas drogas para câncer de mama não teriam aparecido se
não estivéssemos combatendo uma forma rara de leucemia.
De que maneira as pesquisas
sobre o câncer contribuíram para os tratamentos paliativos em outros tipos de
doença?
Os benefícios são enormes. Alguns remédios
destinados ao câncer não surtiram efeito e se tornaram muito eficazes em outras
doenças. O Avastin, por exemplo, está no centro de uma grande controvérsia nos
Estados Unidos por causa do debate sobre sua eficácia no tratamento do câncer
de mama. Ocorre que o Avastin é muito eficaz na prevenção de certo tipo de cegueira
em idosos, uma variação da degeneração da mácula. Gosto de citar o exemplo do
velcro. Ele foi desenvolvido para a Nasa a fim de facilitar as caminhadas
espaciais dos astronautas e hoje está em tudo que é lugar. Produtos
farmacêuticos também podem ser usados de múltiplas formas, além do campo
original do câncer.
O senhor mostra no livro o
aumento da incidência de câncer provocado pelo fumo e o papel exercido nos
Estados Unidos pela indústria do tabaco. Qual é a parte da mensagem 'não fume'
que o público ainda não compreende?
Não tenho como enfatizar o bastante a
importância de combater o cigarro. O obstáculo ao tratamento já é tão alto que
sentimos enorme frustração, diante da complexidade do que vamos enfrentar,
quando coisas simples como não fumar nos escapam. Você só precisa passar dez
minutos no pavilhão do hospital-escola do outro lado da rua para entender as
consequências do fumo. Não é só o câncer de pulmão. É o câncer de lábios,
laringe, esôfago. O câncer do esôfago é um ótimo exemplo porque não temos um só
remédio para tratar dele fora a cirurgia, que debilita profundamente a pessoa.
É interessante notar, do ponto de vista epidemiológico, como as companhias de
cigarro dirigem seus comerciais. Sabemos que, se você atingir os jovens, estará
recrutando fumantes para o resto da vida. Não é comum começar a fumar aos 40
anos, mas, quem começa nessa idade, dificilmente ficará dependente. Se os
médicos estão lendo os estudos, as fábricas de cigarro também estão e sabem
exatamente como dirigir sua propaganda. Observe os anúncios de cigarro (nos EUA
ainda são permitidos anúncios de tabaco em jornais, revistas e outdoors; no
Brasil estão totalmente proibidos) e veja como eles falam aos jovens, mostrando
o fumo como algo sensual.
O vínculo entre álcool e câncer
é mais recente e, portanto, menos conhecido?
O álcool é um carcinogênico. Seu efeito se faz
junto com o fumo. Estudos inquestionáveis mostram que o álcool somado ao fumo
aumenta em grande parte o risco do câncer do esôfago. Já sabíamos que o álcool
era um fator de risco para o câncer de fígado.
Quais são os tipos de câncer
mais comuns que podem ser evitados?
Se levarmos em conta substâncias
carcinogênicas como o tabaco, poderíamos evitar o câncer de pulmão, lábios,
laringe, boca e esôfago. O câncer de pâncreas também tem sido ligado ao fumo de
maneira expressiva, assim como o câncer de bexiga. O álcool, como dissemos, é
um cofator no câncer de esôfago. E há vírus como o papiloma humano, que pode
levar ao câncer cervical e a tumores de boca e garganta.
Em que estágio nos encontramos
na identificação das causas ambientais do câncer?
É uma pergunta complexa. Quando
temos um fator de risco raro que provocou uma alta expressiva de casos de
câncer é mais fácil detectar a causa. Caso clássico é o do amianto e sua
ligação com o câncer de pulmão. O mais difícil é encontrar fatores comuns de
risco que provocam um número pequeno de casos. Um exemplo seria a terapia de
reposição hormonal em mulheres. Havia uma grande população de mulheres em
tratamento hormonal, sabíamos que ele aumentava o risco de câncer de mama, mas
de forma moderada. Essas situações oferecem o maior desafio. Se tivermos uma
substância nociva na água ou no ar que respiramos e ela não provocar câncer em
massa, é difícil provar a origem dos casos.
Qual a importância de se
investigar os fatores ambientais no risco de câncer?
Isso é muito importante porque não sabemos o
suficiente sobre os riscos. No passado dizíamos: "Que horror, estas
pessoas que foram expostas a essa ou aquela substância correram mais risco de
câncer". Olhar para trás não é o método preferencial. Para olhar para
frente e impedir que as pessoas sejam expostas ao risco é preciso compreender o
comportamento das células cancerosas, como se vem fazendo. Se conhecermos os
caminhos que foram ou não ativados nas células, poderemos fazer experiências de
laboratório antes de expor seres humanos a certos produtos químicos. E a
ciência poderá prever se um produto é carcinogênico e em que escala. Mudar o
foco das amostras humanas do passado para a previsão em laboratório não só
protege mais gente. É também mais barato e eficaz. O National Institute of
Health desenvolve uma grande pesquisa sobre os criptocarcinogênicos, as
substâncias cancerosas difíceis de detectar.
Como foi a reação dos pacientes
ao seu livro?
Tentei manter os dois mundos separados. Se um
paciente perguntava sobre ele, eu respondia. E me recusei a ficar envolvido em
aspectos comerciais, de venda do livro.
Havia casos de pacientes graves
que faziam o senhor torcer para eles não tocarem no assunto?
Não. Uma das razões pela qual a medicina é uma
arte e uma ciência é que você precisa ter uma percepção psicológica do seu
paciente, da mesma forma que o paciente precisa entender a psicologia do
médico. Sei que o livro pode ser duro para alguns. Mas fico gratificado quando
alguém chega e diz: o processo de desmistificar o câncer foi, em si mesmo, uma
terapia, um paliativo.
Não é raro atribuir ao paciente
a culpa pela doença, como se ele tivesse fabricado a proliferação das células
por algum tipo de comportamento 'errado'.
É muito importante enfrentar essa culpa. A
ideia de que você se deu um câncer é exemplo clássico de culpar a vítima.
Fizemos isso com as mulheres que sofreram de câncer, especialmente câncer da
mama, e isso acontece ainda hoje.
Isso acontece porque o seio é um
símbolo de maternidade e sensualidade feminina?
Sim, isso à maneira como encaramos o corpo da
mulher e como as mulheres encaram seu corpo. O seio é um símbolo de nutrição,
de sexo e de feminilidade. Livros e livros foram escritos sobre a relação
complexa entre a medicina e o câncer de mama. Outro aspecto importante nesse
jogo de culpa é o da psique: você teve câncer porque é uma pessoa negativa.
Sim, a maneira como você enfrenta um tratamento e se cura é influenciada pela
sua psique. Mas não se deve responsabilizar a vítima por uma doença. É preciso
lembrar que o câncer é uma doença dos genes, e não necessariamente herdada. É
verdade que você precisa compreender como o aspecto psicológico pesa na
evolução das células. Mas é preciso passar antes por conjecturas implausíveis.
Essa conexão percorre um longo caminho.
O senhor fala dos efeitos do
câncer também nas famílias dos pacientes. Escrever o livro afetou sua vida
familiar?
Sim e não. A situação é incomum porque, como
oncologista, o médico vive sob um temor perpétuo de que a doença aflija as
pessoas que mais ama. É preciso controlar esse medo, senão viro um pai meio
maluco. Mas, por outro lado, escrever o livro dissolveu meu medo de ter câncer.
O GRANDE
INJUSTICEIRO
O câncer é tragicamente igualador e todos temos alguma
ligação com ele, diz oncologista-escritor
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo - 11 de
março de 2012
No filme Desconstruindo Harry, de 1997, o neurótico Harry Block, vivido por Woody Allen, declara que "as palavras mais bonitas da língua inglesa não são 'eu te amo', e sim 'é benigno'". Mas, no ano passado, 1 milhão e 600 mil americanos tiveram que se contentar apenas com o "I love you".
Em suas múltiplas encarnações como
hipocondríaco, Woody Allen poderia perder o ímpeto piadista num primeiro
encontro com o oncologista Siddhartha Mukherjee. O autor de O Imperador de
Todos os Males: Uma Biografia do Câncer (Companhia das Letras), vencedor do
Prêmio Pulitzer de 2011 na categoria não ficção, chega junto com a repórter ao
lobby do moderno edifício no Harlem. Não fosse pelo letreiro que anuncia o
Columbia Cancer Center, o visual do médico o remeteria a uma galeria de arte em
Chelsea. De botas pretas, blazer da Osklen ("só compro blazer dessa grife
brasileira") e cabelo cuidadosamente espigado, ele é puro cool. No
escritório, oferece um café de qualidade ("aqui há muito médico europeu, o
café é melhor") e se lança às respostas com o apetite e a clareza de quem
não acredita em escrita com perfil de consultório. "Escrever é
escrever", diz.
Best-seller nos Estados Unidos e traduzido em
sete línguas, o livro de estreia do indiano nascido em Nova Délhi há 41 anos
conta a história do mal que não é um, mas vários. O que a palavra câncer
descreve em comum é o crescimento anormal de células. Não existe uma cura
universal para o câncer, explica o autor, porque não existe o tumor
geneticamente universal.
A prosa de Mukherjee é elegante e sua crônica
de 4 mil anos plena de citações literárias, que incluem Aleksandr Soljenitsyn
(Pavilhão de Cancerosos), Susan Sontag (A Doença como Metáfora) e uma inédita
aplicação médica para a famosa abertura de Anna Karenina sobre famílias e infelicidade:
"As células normais são identicamente normais; as células malignas se
tornam infelizmente malignas de maneira única".
O câncer, lembra Mukherjee, é a mais antiga das
doenças. A ideia de que seja moderno faz sentido: é um mal da longevidade. Daí
sua explosão a partir do século 20, com o súbito aumento da expectativa de
vida. "O câncer é minha nova normalidade", diz uma paciente de
Mukherjee, com a qual ele concorda. À medida que a incidência de certos tipos
de câncer em alguns países já é de 1 para 2, ele encara a doença como
inevitável. Mas conta que escrever o livro tirou seu medo de encarar tal
destino.
O presidente venezuelano Hugo
Chávez faz segredo total sobre o tratamento de um câncer na região da
pélvis e, por esse motivo, seus boletins são em geral desacreditados. Já Luiz
Inácio Lula da Silva, nosso ex-presidente e figura determinante na política do
País, decidiu abrir o jogo sobre a evolução do câncer da laringe, descoberto em
outubro. Em que medida a superexposição prejudica ou ajuda o tratamento?
É importante compreender que as doenças afetam
a todos. São tragicamente igualadoras, você não está imune porque é presidente,
assim como não está imune porque mora na favela. E, de alguma forma, todo mundo
tem alguma ligação com o câncer. Então acho que a figura pública beneficia os
pacientes anônimos, aumenta a visibilidade da doença e afeta a maneira como se
levantam fundos para a pesquisa. Essa é uma consequência muito importante
porque boa parte do dinheiro é devotado à pesquisa, o que nos permite tratar de
futuras gerações de pacientes.
Em sua experiência no tratamento
de pessoas de países diferentes, notou distinções culturais importantes
na forma como os pacientes lidam com a doença? E quando eles têm
religiões diferentes?
Descobri que as diferenças culturais são menos
importantes que as diferenças interpessoais. A reação do ser humano ao câncer
ou a outra doença dessa magnitude é tão diferente de pessoa para pessoa que
supera o fator cultural, ainda que ele tenha peso. Nos Estados Unidos, certos
grupos têm uma suspeita grande quanto ao sistema de saúde - não sem razão. Os
afro-americanos, por exemplo, sempre estiveram em desvantagem, especialmente
nos casos de câncer. Entre dois pacientes com o mesmo status social, um
americano negro e um branco vão receber cuidados médicos diferentes, desde o
começo. Então a suspeita contra o establishment médico é justificada. Já quanto
à religião, encontrei algumas dificuldades. Um exemplo: testemunhas de Jeová
criam obstáculos para a químio em pacientes com leucemia, especialmente por
causa da transfusão de sangue. A situação se torna muito complicada porque você
quer respeitar as convicções dos outros, mas a necessidade de transfusão
costuma ser imediata. É muito difícil lidar com isso.
O senhor atribui as derrotas da 'guerra ao
câncer' declarada pelo presidente Richard Nixon em 1971 ao fato de que não
havia um conhecimento científico servindo de munição. Na conclusão do livro,
entre as novas armas, o senhor afirma que o projeto do genoma do câncer será
mais importante do que foi o
Projeto Genoma. Qual é o novo
caminho para a vitória contra o câncer?
Hoje entendemos a célula do câncer num nível
biológico e mecânico que não existia há dez anos. A diferença é enorme. Temos,
afinal, a capacidade de começar a resolver o problema da gênese da doença e
possivelmente do tratamento e da cura potencial de certos tipos de câncer.
Obviamente, esta não é uma doença só, mas várias.
O senhor está usando a expressão
'cura potencial'.
Sim, porque há muito que realizar. Mesmo o
projeto do genoma do câncer, que nos daria uma visão incrivelmente detalhada da
anatomia anormal da doença, ainda não atingiu seu potencial máximo. Sabemos
hoje o que são alguns dos genes do câncer, mas não sabemos o que fazem. É saber
da existência de algo, sem compreender o seu mecanismo. Mesmo quando
descobrirmos o que esses genes alterados vão fazer, ainda teremos que descobrir
uma estratégia de prevenção e tratamento com foco nos genes alterados. E isso
não será possível em todos os casos, só em alguns. Dito isso, já existe um
número crescente de exemplos em que o conhecimento dessa anatomia levou a
mecanismos de prevenção e tratamento. O caso do melanoma maligno metastático é
um bom exemplo. Se estivesse localizado, o único tratamento era a cirurgia. Se
tivesse se espalhado, não havia nenhuma droga aprovada em experiências
clínicas. Agora existem duas ou três que parecem fazer efeito. Usadas
individualmente, têm resultado modesto e o paciente desenvolve resistência a
elas em pouco tempo. Mas podemos combiná-las. O desenvolvimento dessas drogas
abre um universo de medicamentos novos. Para você ter uma ideia, quando eu era
fellow em Boston, há nove anos, era quase impossível encontrar um colega que
escolhesse o melanoma como especialidade. Hoje sei, como membro do comitê de
admissões, que um em cada quatro ou cinco candidatos escolhe esse campo. O
otimismo cresce graças a essas descobertas. Há um panorama em transformação.
Como o fator econômico afeta as
decisões sobre quais tipos de câncer recebem mais atenção nos EUA? E como as
instituições públicas ajudam a corrigir distorções?
As instituições públicas são fundamentais. Só a
pesquisa usada no meu livro mostra o papel importantíssimo do National
Institute of Cancer e do National Institute of Health. São eles que dão a
plataforma nacional para a pesquisa que é avaliada pelos colegas de profissão,
relativamente livre do interesse econômico. Mas nada é 100% imune à
contaminação. Mesmo nos anos 90 havia grande resistência por parte da indústria
farmacêutica em desenvolver drogas para o que então chamávamos de tipos raros
de câncer, como a leucemia mieloide crônica. Mesmo assim, um dos maiores
exemplos de sucesso na compreensão da genética do câncer foi o desenvolvimento
do Glivec (mesilato de imatinibe). Considero a chegada dessa droga um fato
histórico porque ela não apenas nos permitiu entender que, se você mira numa
célula cancerosa, pode obter resultados impressionantes, mas também mudou o
paradigma para a produção de drogas de maneira geral. Há drogas novas para
câncer de mama que estão para chegar ao mercado e são primas químicas do
Glivec. Então, se você estuda algo em profundidade, acaba se abrindo para um
universo mais amplo. Novas drogas para câncer de mama não teriam aparecido se
não estivéssemos combatendo uma forma rara de leucemia.
De que maneira as pesquisas
sobre o câncer contribuíram para os tratamentos paliativos em outros tipos de
doença?
Os benefícios são enormes. Alguns remédios
destinados ao câncer não surtiram efeito e se tornaram muito eficazes em outras
doenças. O Avastin, por exemplo, está no centro de uma grande controvérsia nos
Estados Unidos por causa do debate sobre sua eficácia no tratamento do câncer
de mama. Ocorre que o Avastin é muito eficaz na prevenção de certo tipo de cegueira
em idosos, uma variação da degeneração da mácula. Gosto de citar o exemplo do
velcro. Ele foi desenvolvido para a Nasa a fim de facilitar as caminhadas
espaciais dos astronautas e hoje está em tudo que é lugar. Produtos
farmacêuticos também podem ser usados de múltiplas formas, além do campo
original do câncer.
O senhor mostra no livro o
aumento da incidência de câncer provocado pelo fumo e o papel exercido nos
Estados Unidos pela indústria do tabaco. Qual é a parte da mensagem 'não fume'
que o público ainda não compreende?
Não tenho como enfatizar o bastante a
importância de combater o cigarro. O obstáculo ao tratamento já é tão alto que
sentimos enorme frustração, diante da complexidade do que vamos enfrentar,
quando coisas simples como não fumar nos escapam. Você só precisa passar dez
minutos no pavilhão do hospital-escola do outro lado da rua para entender as
consequências do fumo. Não é só o câncer de pulmão. É o câncer de lábios,
laringe, esôfago. O câncer do esôfago é um ótimo exemplo porque não temos um só
remédio para tratar dele fora a cirurgia, que debilita profundamente a pessoa.
É interessante notar, do ponto de vista epidemiológico, como as companhias de
cigarro dirigem seus comerciais. Sabemos que, se você atingir os jovens, estará
recrutando fumantes para o resto da vida. Não é comum começar a fumar aos 40
anos, mas, quem começa nessa idade, dificilmente ficará dependente. Se os
médicos estão lendo os estudos, as fábricas de cigarro também estão e sabem
exatamente como dirigir sua propaganda. Observe os anúncios de cigarro (nos EUA
ainda são permitidos anúncios de tabaco em jornais, revistas e outdoors; no
Brasil estão totalmente proibidos) e veja como eles falam aos jovens, mostrando
o fumo como algo sensual.
O vínculo entre álcool e câncer
é mais recente e, portanto, menos conhecido?
O álcool é um carcinogênico. Seu efeito se faz
junto com o fumo. Estudos inquestionáveis mostram que o álcool somado ao fumo
aumenta em grande parte o risco do câncer do esôfago. Já sabíamos que o álcool
era um fator de risco para o câncer de fígado.
Quais são os tipos de câncer
mais comuns que podem ser evitados?
Se levarmos em conta substâncias carcinogênicas como o tabaco, poderíamos evitar o câncer de pulmão, lábios, laringe, boca e esôfago. O câncer de pâncreas também tem sido ligado ao fumo de maneira expressiva, assim como o câncer de bexiga. O álcool, como dissemos, é um cofator no câncer de esôfago. E há vírus como o papiloma humano, que pode levar ao câncer cervical e a tumores de boca e garganta.
Se levarmos em conta substâncias carcinogênicas como o tabaco, poderíamos evitar o câncer de pulmão, lábios, laringe, boca e esôfago. O câncer de pâncreas também tem sido ligado ao fumo de maneira expressiva, assim como o câncer de bexiga. O álcool, como dissemos, é um cofator no câncer de esôfago. E há vírus como o papiloma humano, que pode levar ao câncer cervical e a tumores de boca e garganta.
Em que estágio nos encontramos
na identificação das causas ambientais do câncer?
É uma pergunta complexa. Quando temos um fator de risco raro que provocou uma alta expressiva de casos de câncer é mais fácil detectar a causa. Caso clássico é o do amianto e sua ligação com o câncer de pulmão. O mais difícil é encontrar fatores comuns de risco que provocam um número pequeno de casos. Um exemplo seria a terapia de reposição hormonal em mulheres. Havia uma grande população de mulheres em tratamento hormonal, sabíamos que ele aumentava o risco de câncer de mama, mas de forma moderada. Essas situações oferecem o maior desafio. Se tivermos uma substância nociva na água ou no ar que respiramos e ela não provocar câncer em massa, é difícil provar a origem dos casos.
É uma pergunta complexa. Quando temos um fator de risco raro que provocou uma alta expressiva de casos de câncer é mais fácil detectar a causa. Caso clássico é o do amianto e sua ligação com o câncer de pulmão. O mais difícil é encontrar fatores comuns de risco que provocam um número pequeno de casos. Um exemplo seria a terapia de reposição hormonal em mulheres. Havia uma grande população de mulheres em tratamento hormonal, sabíamos que ele aumentava o risco de câncer de mama, mas de forma moderada. Essas situações oferecem o maior desafio. Se tivermos uma substância nociva na água ou no ar que respiramos e ela não provocar câncer em massa, é difícil provar a origem dos casos.
Qual a importância de se
investigar os fatores ambientais no risco de câncer?
Isso é muito importante porque não sabemos o
suficiente sobre os riscos. No passado dizíamos: "Que horror, estas
pessoas que foram expostas a essa ou aquela substância correram mais risco de
câncer". Olhar para trás não é o método preferencial. Para olhar para
frente e impedir que as pessoas sejam expostas ao risco é preciso compreender o
comportamento das células cancerosas, como se vem fazendo. Se conhecermos os
caminhos que foram ou não ativados nas células, poderemos fazer experiências de
laboratório antes de expor seres humanos a certos produtos químicos. E a
ciência poderá prever se um produto é carcinogênico e em que escala. Mudar o
foco das amostras humanas do passado para a previsão em laboratório não só
protege mais gente. É também mais barato e eficaz. O National Institute of
Health desenvolve uma grande pesquisa sobre os criptocarcinogênicos, as
substâncias cancerosas difíceis de detectar.
Como foi a reação dos pacientes
ao seu livro?
Tentei manter os dois mundos separados. Se um
paciente perguntava sobre ele, eu respondia. E me recusei a ficar envolvido em
aspectos comerciais, de venda do livro.
Havia casos de pacientes graves
que faziam o senhor torcer para eles não tocarem no assunto?
Não. Uma das razões pela qual a medicina é uma
arte e uma ciência é que você precisa ter uma percepção psicológica do seu
paciente, da mesma forma que o paciente precisa entender a psicologia do
médico. Sei que o livro pode ser duro para alguns. Mas fico gratificado quando
alguém chega e diz: o processo de desmistificar o câncer foi, em si mesmo, uma
terapia, um paliativo.
Não é raro atribuir ao paciente
a culpa pela doença, como se ele tivesse fabricado a proliferação das células
por algum tipo de comportamento 'errado'.
É muito importante enfrentar essa culpa. A
ideia de que você se deu um câncer é exemplo clássico de culpar a vítima.
Fizemos isso com as mulheres que sofreram de câncer, especialmente câncer da
mama, e isso acontece ainda hoje.
Isso acontece porque o seio é um
símbolo de maternidade e sensualidade feminina?
Sim, isso à maneira como encaramos o corpo da
mulher e como as mulheres encaram seu corpo. O seio é um símbolo de nutrição,
de sexo e de feminilidade. Livros e livros foram escritos sobre a relação
complexa entre a medicina e o câncer de mama. Outro aspecto importante nesse
jogo de culpa é o da psique: você teve câncer porque é uma pessoa negativa.
Sim, a maneira como você enfrenta um tratamento e se cura é influenciada pela
sua psique. Mas não se deve responsabilizar a vítima por uma doença. É preciso
lembrar que o câncer é uma doença dos genes, e não necessariamente herdada. É
verdade que você precisa compreender como o aspecto psicológico pesa na
evolução das células. Mas é preciso passar antes por conjecturas implausíveis.
Essa conexão percorre um longo caminho.
O senhor fala dos efeitos do
câncer também nas famílias dos pacientes. Escrever o livro afetou sua vida
familiar?
Sim e não. A situação é incomum porque, como
oncologista, o médico vive sob um temor perpétuo de que a doença aflija as
pessoas que mais ama. É preciso controlar esse medo, senão viro um pai meio
maluco. Mas, por outro lado, escrever o livro dissolveu meu medo de ter câncer.
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