sábado, 26 de abril de 2014

Como a cocaína era usada antigamente

Como a cocaína era usada antes de ser proibida

 

A droga, vendida livremente, tratava de dor de dente a depressão e contava com entusiastas como Sigmund Freud e o papa Leão 13


Superinteressante - Déborah de Paula Souza | 15/03/2012 15h48


Sigmund Freud podia comprar cocaína em qualquer farmácia de Viena. O pai da psicanálise adorava o seu efeito erótico. Numa de suas cartas apaixonadas a Martha Bernays (com quem depois se casou e conviveu por 53 anos), escreveu: "Ai de você, minha princesa, quando eu chegar. Vou beijá-la até você ficar bem corada e alimentá-la até que fique rechonchuda. E se você for bem teimosa, verá quem é mais forte: uma delicada jovem que não quer comer o suficiente ou um grande e selvagem homem que tem cocaína no corpo". Em outras cartas, desculpou-se com a amada pelo ardor das confissões, alegando que a cocaína destravava sua língua.

De acordo com o psicanalista argentino Emilio Rodrigué, autor da biografia Sigmund Freud, o Século da Psicanálise, o médico vienense passou a consumir cocaína a partir dos 28 anos - e fez isso por mais de uma década. Não fosse seu ímpeto em elogiar a substância na fase inicial das pesquisas, teria lugar de honra na psicofarmacologia moderna, já que foi um dos pioneiros a experimentar e fazer registros científicos de psicoativos. No século 19, seu artigo Über Coca (Supercoca) sintetizou o clima de esperança dos cientistas com a nova droga. Freud recomendava o uso como estimulante, para distúrbios digestivos, fraqueza, no tratamento de dependentes de álcool e morfina, contra a asma, como afrodisíaco e, por fim, como anestésico. Seu estudo abriu o caminho para que seu colega Carl Koller entrasse para a história da medicina como o descobridor da anestesia local. Rodrigué diz, brincando, que Freud teria antecipado a Coca-Cola ao escrever um bilhete chamando o médico de "querido amigo Coca Koller".

Os primeiros testes da anestesia local de Koller foram feitos em uma rã - bastaram algumas gotas de colírio à base de cocaína nos olhos do bicho para que fosse operado sem trauma nem dor. O trabalho causou comoção numa convenção de oftalmologia em 1884. Koller levou a fama pela anestesia ocular, mas, no mesmo ano, nos Estados Unidos, o pai da cirurgia moderna, William Stewart Halsted (1852-1922), desenvolveu uma espécie de bloqueador neural. Com injeções de cocaína em alguns nervos, conseguia anestesiar determinada área. Publicou mais de mil casos bem-sucedidos de cirurgias indolores, mas como testava drogas em si mesmo, acabou viciado em cocaína e morfina.

No final do século 19, uma paciente de Freud morreu de overdose e, entre 1885 e 1990, novos relatos clínicos revelaram tudo o que a comunidade científica precisava saber para abandonar de vez o uso da cocaína como medicamento. A reputação de Freud só não foi destruída porque era impossível controlar abusos de pacientes. O "pó mágico" era consumido livremente, fabricado por grandes laboratórios e considerado um remédio de largo espectro - era encontrado até em forma de pastilhas para dor de dentes. Os laboratórios Merck e Parke Davis apresentavam a droga em versões variadas: pó, extratos fluidos, inaladores, sprays e tônicos. Além dos medicamentos, doses generosas de cocaína estavam presentes em cigarros e bebidas, como o Vinho Mariani e a Coca-Cola, que foi lançada em 1886 e só retirou o alcaloide da fórmula em 1903.

Drinque do papa

As propagandas do fim do século 19 pregavam que a cocaína "tornava os homens mais corajosos e enchiam as damas de vivacidade e charme". Para ter uma ideia da popularidade da droga, o papa Leão 13 (1810-1903) estampava o rótulo do Vinho Mariani, um poderoso coquetel à base de cocaína e álcool criado pelo químico francês Angelo Mariani em 1863 -, que se tornou a bebida predileta do Sua Santidade. O médico Howard Markel, autor de Anatomy of Addiction (Anatomia do Vício), afirma que Mariani foi um dos primeiros a fazer fortuna com a cocaína - o "drinque do papa" conquistou rapidamente intelectuais e celebridades. A lista dos admiradores inclui os escritores Julio Verne, Henrik Ibsen, Alexandre Dumas e Arthur Conan Doyle (o criador do detetive Sherlock Holmes, um usuário notório). Thomas Edison e o ex-presidente americano Ulysses S. Grant completam a lista. Antes de morrer de câncer na garganta, em 1885, Grant redigiu suas memórias sob o efeito desse "vinho tônico". E é muito provável que tenha exagerado as façanhas e os efeitos da bebida.